Discurso para a reunião anual dos juízes

23 October 2017

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Discurso para juízes – Richard Zimler

Gostaria de começar falando de três processos judiciais muito importantes nos Estados Unidos que ocorreram durante os meus primeiros anos em Nova York. Estes casos levaram-me a formar uma opinião muito positiva do trabalho dos vossos colegas americanos — especialmente os juízes do Supremo Tribunal.
Na segunda parte do meu discurso, vou falar um pouco da opinião popular sobre os tribunais em Portugal e o que as pessoas que conheci quando mudei da California para o Porto em 1990 diziam sobre o vosso trabalho. E como a minha própria opinião sobre os tribunais tem evoluido.
E para terminar, vou falar de duas ameaças à democracia que os cidadãos de Europa e do resto do mundo talvez venham a enfrentar nos próximos anos.

Quando eu era criança, na década de 1960, a América era um país onde existia uma grande segregação racial. Os brancos moravam em determinadas comunidades e os negros noutras. E em cidades como Boston, Detroit, Nova York e Los Angeles, poucas pessoas ousavam atravessar as fronteiras entre essas comunidades com alguma regularidade.
Era também uma época em que os afro-americanos do sul estavam proibidos de entrar em certos restaurantes, hotéis e clubes. Mesmo actores e músicos negros — estrelas mundialmente conhecidas como Louis Armstrong — poderiam ser proibidas de entrar num hotel em Atlanta, Charlotte, Memphis e centenas de outras cidades mais pequenas. Mesmo na capital do país, Washington DC.
Naquela época, os negros não podiam esperar ganhar os mesmos salários que os brancos ou ter as mesmas oportunidades. E em muitas cidades a atmosfera entre as duas comunidades era tensa — e às vezes violenta.
No dia 17 de maio de 1954, o Supremo Tribunal mudou a vida de todos os americanos. Nesse dia, os nove juízes que o constituíam decidiram que era inconstitucional que os estados americanos mantivessem escolas separadas para crianças de etnias diferentes. Até então, 17 Estados americanos impunham escolas separadas. Em lugares como o Texas e a Flórida, alunos negros e brancos não podiam andar na mesma escola pública. E essa proibição existia porque a mistura étnica era considerada um ultraje à moral pública. Contra a natureza. Contra o espírito americano.
O Supremo Tribunal decidiu, no entanto, que as crianças negras mereciam oportunidades iguais às das crianças brancas. Argumentaram que as instalações educacionais separadas eram inerentemente desiguais.
Na década seguinte, os tribunais locais usaram essa decisão para forçar as escolas em todo o país a abandonarem a segregação.
Quem quiser ver algumas imagens da coragem que nessa época foi necessária para ver reconhecido o direito à integração, poderá ir ao YouTube e ver os primeiros nove alunos negros que entram no Liceu Central em Little Rock, no Arkansas, em 1957. Irão ver uma multidão de várias centenas de brancos a persegui-los com insultos, agressões físicas... a cuspir-lhes em cima.

No primeiro dia de escola, os “ Nove de Little Rock”, como esses alunos se tornaram conhecidos, foram impedidos de entrar no Liceu Central pelo governador do Arkansas, que mandou a Polícia do Estado bloquear a entrada principal. Três semanas depois, o Presidente Eisenhower enviou o exército americano para acompanhar os alunos até dentro da escola e para os proteger. Sim, enviou tropas para defender a vida desses nove adolescentes negros!
Como se a integração fosse o início de uma guerra. Ou uma revolução!
O que foi!
Ao longo das primeiras semanas de extrema tensão na escola, esses impecáveis jovens afro-americanos mantiveram a sua compostura – como, não sei.
Nos vídeos de 1960, não derramam uma lágrima, mas sempre que os vejo, choro, porque por alguns instantes o tempo parece ficar parado e a extraordinária dignidade deles parece conter todas as minhas esperanças num mundo melhor .
5 anos mais tarde, James Meredith tornou-se no primeiro afro-americano a matricular-se na Universidade do Mississippi. Nessa altura, eu tinha seis anos e algumas das minhas primeiras lembranças da televisão são de Meredith rodeado por 500 polícias do governo dos EUA. Sim, ouviram bem — foram necessários 500 políciais para o proteger!
Um jovem negro cercado por 500 polícias brancos e uma multidão ainda maior de racistas que preferiam linchá-lo. Isso causou-me uma enorme impressão.
Na minha mente, ainda consigo ver James Meredith arriscando a sua vida no meio de todos aqueles racistas enfurecidos.
Agora, cinquenta e cinco anos depois, todas as universidades da América estão integradas, incluindo a do estado do Mississippi, que já formou milhares de médicos, advogados, professores, arquitetos e cientistas afro-americanos. E juízes também. Hoje em dia, os alunos das escolas secundárias das grandes cidades como Nova York ou Chicago não só incluem negros e brancos, como emigrantes de quarenta ou cinquenta países diferentes no seu conjunto.
E todo esse progresso — este movimento para uma sociedade igualitária — começou com um processo judicial que se iniciou na pequena cidade de Topeka, no Kansas, no meio da América.
O segundo caso que influenciou muito a opinião que hoje tenho sobre os tribunais foi o chamado caso “Engel contra Vital”. Começou em 1962 na minha cidade natal nos subúrbios de Nova York. O processo foi iniciado por um grupo de famílias de estudantes de escolas públicas que se queixavam de que a oração escrita pelo conselho estadual de diretores – que invocava um "Deus Todo-Poderoso" – contradizia a sua liberdade religiosa. Nessa altura, era comum as escolas obrigarem os alunos a recitar orações cristãs, apesar da separação entre a Igreja e o Estado imposta pela Constituição. As famílias que levantaram o caso alegavam especificamente que as orações na escola violavam a primeira emenda à Constituição, que diz: “O Congresso não fará nenhuma lei favorecendo uma ou outra religião”.
O caso subiu do tribunal estadual para o Supremo Tribunal, onde os juízes decidiram que a recitação de uma oração na escola era inconstitucional.
Esta decisão parecia-me muito importante porque fui criado por pais que não queriam que eu participasse em cerimónias ou programas religiosos.
Mais tarde, quando cheguei à idade adulta, compreendi que esta decisão era absolutamente essencial para a defesa dos direitos cívicos básicos. Porque quando a religião e a política alinham forças, o resultado é desastroso para a liberdade de expressão e da imprensa, e mesmo para a liberdade de religião.
Em Portugal, por exemplo, temos a experiência da Inquisição, que perseguiu judeus convertidos, protestantes e outros, desde 1536 até à década de 1770, quando foi desmantelada pelo Marquês de Pombal. Dezenas de milhares de homens e mulheres — e mesmo crianças — foram torturados em prisões especiais e até queimados em espetáculos públicos. Hoje em dia, podemos ver o resultado do “casamento” entre religião e estado no Irão, na Arábia Saudita e em vários outros países, e ver a opressão — particularmente das mulheres e das minorias — que esses governos fazem.
O terceiro caso que se destaca na minha memória é o julgamento de Muhammad Ali, o famoso pugilista. Em 1967, quando era campeão mundial de pesos pesados e já uma das figuras desportivas mais conhecidas do mundo, Ali foi convocado pelo governo federal para cumprir o serviço militar obrigatório. Nessa altura, a América tinha centenas de milhares de soldados no Vietnam, lutando numa guerra que acabaria por matar mais de 2 milhões de vietnamitas e 55 mil americanos.
Ali recusou-se a entrar na tropa. Como muçulmano praticante, tentou conseguir uma exceção como objetor de consciência. Declarou: "A guerra é contra os ensinamentos do Alcorão ..... Não tive qualquer discussão com os Viet Cong. Porque me pedem os Estados Unidos para vestir uma farda militar e ir a dez mil milhas de casa atirar bombas e balas sobre pessoas de cor no Vietnam enquanto os Negros no Sul são tratados como cães e lhes são negados os direitos humanos mais básicos?”
Ao recusar integrar o Exército, Ali arriscava-se a um crime punível com cinco anos de prisão.
A Comissão de Atletismo do Estado de Nova York suspendeu imediatamente a sua licença de pugilista e retirou-lhe o título que conquistára. Outras comissões semelhantes seguiram-lhe o exemplo. Em consequência disso, Ali não obteria nenhuma licença para praticar o seu desporto – a sua profissão – durante mais de três anos.
No julgamento do caso, no dia 20 de junho de 1967, o júri considerou Ali culpado após apenas 21 minutos de deliberação. Depois de um tribunal de segunda instância ter conformado a condenação, o caso foi remetido para o Supremo Tribunal em 1971.
Embora a maioria dos comentadores dos média — e especialmente os jornalistas das publicações desportivas — tenha atacado Ali e o tenha acusado de traição, o pugilista tornou-se um orador popular em várias universidades de todo o país.
Eu tinha 15 anos quando Ali foi julgado. Respeitava-o profundamente por se recusar a lutar numa guerra que ele – e eu – considerava uma guerra inútil e injusta. Também o admirava como pugilista. Ele tinha um carisma e um encanto muito especial.
No dia 28 de junho de 1971, o Supremo Tribunal anulou a condenação de Ali por uma decisão unânime. Esse tribunal decidiu que, uma vez que os tribunais anteriores não tinham tomado seriamente em conta o direito de Ali à a objeção de consciência, a sua condenação devia ser revertida.
Fiquei muito impressionado com os juízes do Supremo Tribunal. Pareceu-me que estavam a enviar uma mensagem clara a todo o mundo de que cada pessoa tinha o direito de dizer “não” a qualquer ordem que vá contra sua consciência.
A posição corajosa de Ali acabou por dinamizar os movimentos contra a guerra no Vietnam e a favor dos direitos cívicos dos afro-americanos. Alguns anos mais tarde, ele recuperou o título de campeão, ao vencer George Foreman. Ali tornou-se o atleta mais popular, mais famoso e mais respeitado do mundo.


Naturalmente, ao falar sobre estes três casos particulares, não quero dar a impressão de que os tribunais da América são universalmente respeitados. E que o Sistema de Justiça funciona bem.
Vocês que estão conscientes dos casos dos jovens negros mortos por polícias brancos em Saint Louis e muitas outras cidades americanas sabem muito bem que o Sistema de Justiça nos EUA sofre de alguns problemas graves.
Queria agora falar muito rapidamente de três desses grandes problemas:
O primeiro... As prisões estão a tornar-se cada vez mais privatizadas nos EUA. Sim, ouviram bem. Na América, muitas empresas estão a fazer lucros encarcerando homens e mulheres. E jovens. Essas empresas tipicamente entram em acordos com os governos de alguns estados – como a Florida e o Texas. Esse estado paga um determinado valor por dia ou por mês, por cada prisioneiro.
As estatísticas do Departamento de Justiça em 2013 indicavam que, nessa altura, havia 133 mil prisioneiros estaduais e federais alojados em prisões privadas. O sector prisional privado ganhou mais de 5 mil milhões de dólares em 2011.
A meu ver, permitir que que uma empresa faça lucro mantendo uma pessoa em prisão é inadmissível – moralmente repugnante e perigoso.
Não só isso, mas estas prisões com fins lucrativos não constituem qualquer vantagem económica para os governos estaduais ou para o governo federal. As prisões dirigidas por empresas privadas custam mais do que as prisões públicas! E a violência é maior. Um estudo nacional recente indica que os assaltos aos guardas pelos presos eram 49 por cento mais frequentes nas prisões privadas do que nas prisões administradas pelo governo. O mesmo estudo revelou que os ataques a outros presos eram 65 por cento mais frequentes nas prisões com fins lucrativos.
Problema número 2, A Guerra das Drogas.
Nos EUA, há mais pessoas presas e incarceradas por posse ou venda de drogas do que por crimes violentos.
Nos Estados Unidos há todos os dias pelo menos 140 mil pessoas que passam os seus dias trás das grades por terem na sua posse marijuana ou ecstasy ou cocaina ou outras drogas ilegais. Quase dois terços delas estão em prisões locais.
Isto é absurdo e extremamente caro. Não faz bem a ninguém.
Será necessário dizer que um jovem que fica numa prisão durante 10 anos por posse de marijuana ou haxixe acaba por ficar muito mais violento e menos estável?
Uma das medidas mais importantes e mais inteligentes tomadas por Portugal nos últimos 20 anos foi a de acabar com esta guerra ridícula e descriminalizar as drogas – e de tratar a toxicodependência como uma doença.
2) Problema Número 3 — o sistema é racista.
Considerem os seguintes pontos, por favor:
Os jovens afro-americanos são 10 vezes mais propensos do que os seus pares brancos a serem condenados a prisão perpétua sem possibilidade de liberdade condicional. Sim, 10 vezes mais!
Embora os afro-americanos representem apenas 12% da população total, representam mais da metade dos jovens condenados por toda a vida e sem liberdade condicional.
Um número muito desproporcional de negros é condenado à morte pelo governo em Estados como Texas, Georgia e Alabama.

Apesar desses enormes problemas do Sistema de Justiça nos EUA, continuo a sentir o mesmo respeito enorme que criei na minha juventude pelos tribunais e pela sua capacidade de exercer um efeito extremamente positivo na sociedade. Como no caso dos estudantes de Little Rock ou no caso de Muhammad Ali, os tribunais podem proteger os nossos direitos civis e ajudar-nos a criar uma sociedade mais igualitária.
Quando me mudei para Portugal em 1990, esperava que as pessoas que conheci sentissem de forma igual. Mas enganei-me.
Descobri rapidamente que os portugueses com quem falava – em grande parte colegas de trabalho e amigos – tinham pouca fé na honestidade e rigor dos tribunais neste país.
Os meus amigos diziam-me que os tribunais eram corruptos — que os juízes podiam ser influenciados por cunhas e dinheiro.

Era verdade? Continua a ser verdade? Não faço a mais pequena ideia. Estou apenas a repetir o que as pessoas que conheci diziam quando o assunto da justiça em Portugal surgia.
Alguns amigos diziam-me também que os tribunais eram incrivelmente lentos e burocráticos — que os casos geralmente terminavam sem decisão simplesmente devido à prescrição dos prazos legais.
Achei essas opiniões muito perturbadoras. Porque aprendi que, quando as pessoas perdem a fé nas nossas instituições políticas — principalmente nos nossos legisladores e tribunais — ficam alienadas do processo político. Não votam. Ou pior, procuram homens e mulheres que prometem instaurar a ordem na sociedade, muitas vezes através de meios ditatoriais.
Pessoas que perdem a fé nos juízes também não denunciam crimes. Quantas mulheres, por exemplo, relatam os abusos e violações que sofrem?
Quase 700 mulheres em Portugal foram vítimas de crimes sexuais em 2016, mas estima-se que apenas 1 em cada 4 das que são violadas ou abusadas vai à polícia para denunciar o crime.
As pessoas que perdem a fé nos tribunais também não protestam contra qualquer forma de injustiça. Deixam de acreditar que a sua opinião pode contar. Deixam de acreditar que podem influenciar o rumo do país.
dá errado, tentam fazer justiça por suas próprias mãos.
Muitas vezes, parece-me que esta é a situação que temos em Portugal — que a grande maioria das pessoas não acredita que os tribunais assegurem a justiça – que é possível “comprar” um juíz.
Devemos ter em mente que se leva anos para conseguir a confiança do público. E que um só erro pode destruí-la num instante.
Um único juiz corrupto pode arruinar a nossa opinião sobre o trabalho de mais de 100 juízes honestos, rigorosos e inteligentes.
Como nos casamentos: qualquer pessoa casada sabe que a confiança se pode perder num instante. Um erro estúpido pode destruir 20 anos de confiança entre duas pessoas.
Em 2011, foi o que me aconteceu em relação aos tribunais em Portugal: Perdi uma parte significativa da minha confiança neles.
Nessa altura, soube de um caso judicial envolvendo um psiquiatra de uma família abastada e conhecida no Porto. O nome dele: João Vasconcelos Vilas Boas.
Nessa altura, Vilas Boas tratava a depressão de uma doente grávida. Vou chamá-la Maria, embora não seja esse o nome verdadeiro dela.
Em 2009, esse médico psiquiatra forçou Maria, grávida de 34 semanas, a praticar sexo oral no consultório que ele tinha no Porto. Segundo os relatos constantes do processo – relatos que não foram contestados por Vilas Boas ou pelos seus advogados – o crime aconteceu depois de uma sessão quando Maria se levantou para ir embora. Nesse momento, Vilas Voas baixou as calças e ordenou-lhe que fizesse sexo oral. Ela tentou fugir, mas a porta estava trancada à chave. Vilas Boas agarrou-a por trás e introduziu o pénis na boca dela. Ela lutou contra ele, mas o psiquiatra agarrou-a e empurrou-a contra um sofá. Acabou por conseguir introduzir o pénis na vagina dela, e ejaculou.
O arguido foi julgado e condenado em primeira instância, com uma pena de prisão de cinco anos suspensa por igual período. Mas esse julgamento foi anulado pelo tribunal da Relação do Porto.
Segundo a maioria dos juízes do Tribunal da Relação, os actos sexuais dados como provados no julgamento de primeira instância não foram suficientemente violentos.
Ou seja, agarrar a cabeça de uma mulher grávida de 34 semanas, empurrá-la contra um sofá, e introduzir o pénis na boca dela não constituem actos suficientemente violentos.
Quando li sobre o caso num jornal online, fiquei muito chocado. E zangado.
Coloquei um post sobre esta situação no Facebook a alertar os meus amigos, porque me perturbava imenso a ideia de o Dr. Vilas Boas continuar a ter direito a dar conselhos aos seus doentes.
Alguém gostaria de ver a sua esposa ou filha ou sobrinha tratada por um médico que forçou uma senhora grávida de 34 semanas a ter relações sexuais com ele?
Por isso, pedi aos meus amigos para entrarem em contato com jornalistas que pudessem divulgar o caso.
Eu próprio escrevi a vários amigos jornalistas. E dois artigos foram publicados. Também liguei para a Ordem dos Médicos para saber se era possível pedir uma investigação de Vilas-Boas. Fui informado de que já estava em andamento.
Menciono tudo isso em parte porque os comentários que recebi de alguns amigos sobre o meu post no Facebook me ensinaram muito sobre as opiniões que as pessoas têm do sistema de justiça em Portugal.
Talvez alguns dos que me ouvem não fiquem muito satisfeitos com o que vou relatar a este propósito.
Muita gente ficou chocada e perturbada com o caso, claro, mas não recebi uma única mensagem a considerar que os meus esforços valeriam a pena.
Pelo contrário, a maioria dos comentários consideravam que os tribunais nunca condenariam Vilas Boas porque era de uma família conhecida no Porto e tinha amigos ligados aos partidos políticos e aos centros de poder na sociedade portuguesa.
Escreveram-me para me dizer que nem os artigos nos jornais serviriam de alguma coisa. E que eu próprio me arriscava a ser perseguido no Facebook e na minha vida real por amigos dele.
Os comentárias mais perturbantes explicavam-me que nada do que eu fizesse faria qualquer diferença, porque para obter justiça em Portugal é necessário conhecer as pessoas certas. Ou pagar luvas.
Agora, devo dizer que não sei como é que os tribunais deste país vão recuperar o respeito do público, mas parece-me absolutamente essencial que o façam.
Quero acrescentar que, em 2012, três anos depois de Vilas-Boas ter abusado sexualmente da sua paciente, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre o caso e o psiquiatra foi condenado a indemnizar a vítima em 100 mil euros.
No acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça diz que, apesar de não ter ficado provado o uso de violência, a vítima não déra o seu consentimento, explícito ou implícito, para sexo oral ou cópula. “Assim, conclui o STJ, sendo que não é apenas um homem e uma mulher sozinhos, mas um psiquiatra e uma doente depressiva. E é evidente que os factos provados constituem um ostensivo assédio sexual.”
Vilas-Boas foi expulso da Ordem dos Médicos em 2013.
A meu ver, devia passar vários anos numa prisão e ser obrigado a receber tratamentos psicológicos.
O segundo caso que me perturbou muito tem pouco a ver com os tribunais. Tem a ver com o Ministério Público e as leis em Portugal que determinam quanto tempo uma pessoa pode ser sequestrada numa prisão sem ser acusado de nenhum crime.
Nos EUA, na maioria dos estados, os procuradores têm até 72 horas para registar a acusação de um crime. Em outros estados, incluindo a Califórnia, eles têm apenas 48 horas. Se não apresentarem uma acusação passadas 48 ou 72 horas, são obrigados a libertar o suspeito.
Em Portugal, o caso sobre o qual vou falar ensinou-me que um suspeito pode passar muitos meses incarcerado sem ser acusado de nenhum crime.
Como provavelmente já adivinharam, estou a referir-me à investigação sobre José Sócrates. Como todos nos sabemos, é um caso que está a dominar as noticias neste momento.
Uma vez que a própria menção do nome de Sócrates suscita fortes emoções em muitas pessoas, quero desde já deixar muito claro que pessoalmente não tenho nenhuma opinião sobre a culpa ou a inocência dele.
Não tenho a mais pequena ideia se ele participou em fraudes e usou as suas ligações políticas para obter benefícios monetários. Não sou amigo dele. Encontrei-o, uma só vez, há muitos anos, durante uns breves instantes.
Mas acho muito injusto – inaceitável –que ele tenha passado 11 meses na prisão sem ser formalmente acusado de nenhum crime.
Parece-me moralmente reprovável. É o tipo de coerção usada em ditaduras. Mas Portugal não é uma ditadura. É uma democracia, e todos os suspeitos devem ter o direito de saber exatamente de que crimes estão a ser acusados. E, se não houver evidência suficiente, eles devem ser libertados rapidamente.
Será necessário lembrar que os presos da Inquisição em Portugal não eram autorizados a saber quais as acusações formadas contra eles? Ou quem os tinha denunciado?
Há cerca de um ano, falei da minha perspectiva sobre o caso a magistrados do Porto, e vários deles responderam: “Mas a lei permite a prisão preventiva durante os tais 11 meses.”
Como era lei, achavam que não havia nenhuma questão ética ou moral envolvida. Ou que a questão moral era irrelevante.
Fiquei chocado com isso.
Sei muito bem que a lei permite que os procuradores mantenham um suspeito na prisão durante muitos meses sem apresentar acusações contra eles. O que estou a dizer é que essa lei precisa de ser alterada!
José Sócrates é politicamente habilidoso e tem amigos ricos e influentes. E excelentes advogados. Mas qualquer carpinteiro ou professor ou empregado de mesa ou infermeira neste país pode também passar muitos meses numa prisão sem ser acusado de um crime. E, ao contrário de José Sócrates, não terão rendimentos suficientes para pagar aos melhores advogados do país.
Se a lei não for alterada, qualquer um de nós nesta sala poderia teoricamente um dia ver-se na situação de perder o contacto diário com a nossa família durante meses, perder a liberdade, por um crime que não cometemos e sem apresentação de qualquer prova concreta contra nós.

Para terminar o meu discurso, gostaria de fazer dois apelos. Porque, como já referi, acho que vocês podem ser muito importantes na defesa dos nossos direitos cívicos. Vocês podem defender-nos mesmo quando os presidentes e os primeiros ministros e legisladores não queiram.
O meu primeiro apelo tem a ver com os efeitos do terrorismo nas democracias ocidentais, como os EUA. Lá, no meu país de origem, o Congresso e o Presidente usaram o terrorismo como uma desculpa para retirar as liberdades civis de todos os cidadãos e residentes dos EUA.
Lembram-se ainda do Patriot Act? E do seu sucessor, o Freedom Act?
O Patriot Act é um Decreto que foi assinado pelo presidente George W. Bush logo depois dos ataques do dia 11 de setembro de 2001.
O decreto permite, entre outras medidas, que os órgãos de segurança e dos serviços secretos dos EUA interceptem os emails e telefonemas e transações financeiras dos americanos e estrangeiros nos EUA, sem necessidade de qualquer autorização da Justiça. Ou seja, sem o consentimento de um juíz.
E a polícia pode invadir a casa de qualquer americano ou estrangeiro, ou o seu local de trabalho, sem o seu consentimento. Não precisam de dar qualquer aviso prévio ou de ter uma ordem de um juíz.
A minha preocupação é que, se o terrorismo se tornar mais frequente na Europa, os países da Comunidade Europeia se sintam tentados a adoptar legislação que dê os mesmos poderes extraordinários à polícia.
Nesse caso, vocês — os juízes — serão a nossa defesa mais importante contra tais abusos. Talvez a nossa única defesa.
O segundo problema igualmente grave é o uso não autorizado de dados sobre nós.
Queremos que o governo ou as seguradoras de saúde tenham acesso à nossa ficha médica?
Queremos que o chefe da nossa empresa saiba exatamente o que fazemos quando não estamos a trabalhar?
Desejamos que as agências de viagens e hotéis nos inundem com publicidades criadas especificamente para pessoas com o nosso perfil no Facebook ou no Twitter?
Estamos a caminhar para um mundo onde as empresas privadas e os governos saberão tudo sobre nós – sobre os emails que enviamos e as viagens que fazemos e até as conversas que temos em privado.
Independentemente do dilema psicológico que isso pode criar, também pode provocar sérios problemas logísticos e legais.
Hoje em dia, muitas empresas recolhem informações sobre nós e vendem-nas a outras empresas. Sempre que encomendamos um livro da Amazon ou compramos um telefone na FNAC ou pagamos uma fatura num Multibanco, os nossos dados – desde o número do nosso cartão de crédito à nossa morada – podem acabar nos arquivos de centenas de outras empresas.
Isto deveria ser legal?
E devia ser legal o nosso médico vender a nossa ficha médica a um empregador ou ao governo?
Imaginem uma empresa que decide não contratar uma pessoa porque descobre que tem um problema de saúde que pode vir a ser sério dentro de 10 ou 20 ou 30 anos.
Infelizmente, esta situação vai continuar a agravar-se cada vez mais.
O termo "vida privada" terá algum significado daqui a 10 anos?
Mais uma vez, pessoas como eu contam com vocês - os juízes - para nos defender, para determinar que existem limites na troca de informações sobre nós, para determinar, por exemplo, que uma empresa não pode vender os nossos registos escolares ou informações médicas a uma outra empresa. Ou ao governo.
Num mundo de Facebook e Twitter, de compras virtuais e terrorismo, os juízes são a defesa mais importante que os cidadãos têm contra os abusos governamentais, policiais e das empresas privadas. E estou convencido de que a determinação dos juízes — a sua firme defesa das liberdades civis — será posta à prova muitas vezes nas próximas décadas.
Obrigado.

Michael Fieni