Conto: "Pontos de Viragem"

04-12-2010

Pontos de Viragem

Richard C. Zimler

Traduzido por: Daniela Oliveira, Leonora Dias e Vítor Rosas. Coordenação de Fátima Vieira.


Estava a ver umas revistas na Biblioteca Pública de S. Francisco umas semanas atrás, e deparei com o comentário de um autor que dizia que todos os seus contos eram sobre um inocente incapaz de agir perante uma situação traumática. Na minha memória, vi um rapaz de sete anos, de franja loira e comprida. Estava gelado, de pé, diante de um homem magro metido num pijama azul e sentado numa cama de hospital. O homem tinha o rosto encovado e olhos tristes. As suas mãos esqueléticas saíam dos pulsos envoltos em gazes e ligaduras.

O miúdo era eu. O homem debilitado na cama era o meu pai. A minha mãe diz que ele ficou assim depois de ter perdido dois quartos de sangue. A maior parte infiltrou-se na banheira, e quando os paramédicos chegaram a água estava de um rosa enevoado. Ela diz também que me encontraram a tentar puxá-lo para fora. Eu tinha telefonado para o 911, depois voltado para junto dele. Não me lembro de nada disso.

Claro que não era para eu estar em casa. Mas o meu jogo de basebol da Liga Júnior tinha sido suspenso no segundo tempo. Era apenas um chuvisco, mas a base principal, mais baixa do que o resto do campo, tinha formado uma poça.

A minha mãe não chegou nunca a tentar tirar o sangue do meu uniforme. Nem nunca nos preocupámos em encomendar outro. Ela conseguiu arranjar de novo trabalho como empregada de balcão no Magnin’s, e pudemos manter a casa, mas não nos sobrava dinheiro para hobbies. Talvez se eu tivesse implorado… Mas jogar como shortstop na equipa dos Giants não era mais um sonho.

As dálias florescem em Setembro na área metropolitana de S. Francisco. Todos os anos, no aniversário do meu pai, dia 27, ponho numa jarra sobre a lareira umas cor-de-violeta, quais pompons tirados do meu jardim. Suponho que este ritual seja de doidos, mas o que se faz para um pai que simplesmente entrou no seu Rover num belo dia de Maio e desapareceu sem deixar rasto?

Uma das minhas primeiras memórias é do meu pai a cortar um botão cor-de-fogo de uma roseira nas traseiras da nossa casa em S. José Hills, e pedir que eu entrasse para as levar à minha mãe. «Diz que num minuto chego para o almoço», acrescentou.

Por que me lembro daquela simples frase e não de um sussurro de último momento? Toda a minha vida tive a sensação de que nunca recebi dele o conselho ou a senha secreta que fariam de mim um homem.

Depois de os ferimentos do pulso terem cicatrizado, ele veio para casa. Lembro-me de ter ido ao seu encontro à porta, de ter apoiado meus pés nos dele, e assim irmos caminhando até a cozinha. Os seus sapatos eram como grandes barcos negros. Dois dias mais tarde, ele foi embora. Sem deixar uma nota. Sem pistas. Partiu enquanto eu estava na escola e minha mãe fazia compras no Safeway.

Na manhã seguinte à nossa primeira noite sozinhos, a minha mãe disse: «Ele volta, não te preocupes»- A cinza do cigarro encaracolava na ponta. Ela estava de camisa de noite, sentada na cama embalando um conhaque no copo de lavar os dentes. Anos mais tarde, quando estava no liceu, pedi uma explicação plausível. A minha mãe encolheu os ombros. Disse que ele era apenas um mecânico de carros que gostava de cultivar flores. Um tipo normal. Assistia aos jogos dos Giants no Canal 2, comprou um Rover porque era o carro que Laurence Harvey guiava num filme inglês qualquer. As suas comidas predilectas eram guisado e shish kebab. Aos domingos, gostava de ler o S. José Mercury na cama e depois tomar um longo banho de chuveiro. Ela não sabia se ele tinha sido infeliz. O que é certo é que nunca disse nada.

«Vocês nunca conversaram sobre a tentativa de suicídio?» – perguntei.

Foi então que ela perdeu o controle e gritou: «Mas que raio, Charlie, ele comprou sementes de cem malditos catálogos diferentes!»

Isto devia ter um significado especial para ela, mas nunca descobri exactamente qual. Na adolescência, achamos que nossos pais são estranhos e inexplicáveis – mesmo aqueles que não nos abandonam. Tarde de mais, percebi que temos de fazer este tipo de pergunta enquanto ainda temos tempo.

A minha mãe morreu há quatro anos, em Junho, e ocupa metade de um lote duplo que reservara no Cemitério de Hillcrest, em Los Gatos. Suponho que acreditou até o fim que ele iria voltar. Mas não acho que a outra metade vá algum dia ter um corpo. Ele não vai simplesmente ligar-me e avisar que está no leito de morte. Ou fazer uma peregrinação a casa, como um elefante perdido ao seu cemitério ancestral. Ainda assim, seria de esperar que trinta e dois anos depois de ter partido me mandasse um postal dizendo que estava bem e a trabalhar num jardim botânico na Carolina do Sul, ou num viveiro de plantas tropicais em Maui, ou onde quer que seja que jardineiros que são também mecânicos de carro vão para se perderem de vez.

Todos os anos, no Natal, envio à família filipina que comprou a nossa antiga casa um postal, e lembro-lhes para me enviarem cartas que eu ou a minha mãe possamos ter recebido. Devem pensar que sou algum apaixonado não correspondido, vivendo na esperança de receber uma carta da rapariga que me escapou.

Quando consigo ultrapassar a minha fúria descontrolada, admito que ele deve ter sido uma pessoa interessante. Comprou sementes de cem catálogos diferentes. Gostava de o ter conhecido.

Depois de ter lido o comentário do autor sobre um inocente incapaz de agir perante uma situação traumática, e depois de ter pensado «este coitado deve escrever sobre imbecis como eu», lembrei-me de quando, há uns anos atrás, a minha mulher Lana e eu estávamos a caminhar por Castro nos arredores da 18th Street. Era primavera, estava sol. De todas as casas vitorianas irradiava uma promessa briosa e colorida de um lar numa paisagem ingénua. Estávamos felizes, tínhamos acabado de comprar scones no Cheese Board e um exemplar autografado de O Papagaio de Flaubert na livraria Walt Whitman. Quando passámos pelo bar Elephant Walk, vimos uma mulher grávida a mendigar debaixo de um toldo. Estava no mínimo de sete meses, parecia exausta e sem esperança, como uma daquelas mães pobres e sujas das zonas montanhosas fotografadas durante a Grande Depressão. O meu coração saltou no peito quando passámos e senti como se tivesse engolido veneno. Vieram-me lágrimas aos olhos mal chegámos ao carro. Lana ficou lixada. «Então em vez de ficares aí a enredar, como sempre, por que é que não fazes alguma coisa!», berrou.

Limitei-me a olhar para ela. Isto é, o que havia a fazer? Estávamos em 1987, na América de Ronald Reagan, e se uma mulher grávida estava sem abrigo e a mendigar, então era obviamente isso que as pessoas queriam.

Lana tem grandes olhos castanhos, tão escuros e espantosos que é só o que se vê quando a conhecemos. Usava-os para me olhar fixamente como se eu fosse inimigo dela, fazendo-me sentir inacreditavelmente pesado – como um pedregulho enorme que ninguém consegue mover.

«Vou chamar a polícia», disse ela. «Eles têm a obrigação de fazer alguma coisa, de a levar a um abrigo ou qualquer outra coisa».

Lana chamou a polícia de S. Francisco de nossa casa, uma casita de estuque na encosta mais a sul da colina, separando Castro District de Noe Valley. Depois tentou três abrigos. Quando voltou a falar comigo, disse «Os polícias não a ajudam e os abrigos não podem enviar ninguém para a ir buscar. Tem de ser ela a ir bater-lhes à porta e pedir uma cama». Lana estava lívida. «Não dá para acreditar», não parava de sussurrar para si própria.

Estava a sentir-me de certa forma desculpado por saber que nada poderia fazer nem que tentasse. Bati no sofá indicando-lhe que se sentasse a meu lado, mas Lana não quis. Passou as mãos pelos cabelos castanhos, curtos e emaranhados num ninho. Então começou a andar de um lado para o outro. Deixei-me ficar quieto; ela é pequenina e magra, mas é melhor não ficar no seu caminho quando está zangada.

Quando conheci Lana, não sabia nada sobre estas suas fúrias. Achei até que fosse reservada. Só conseguimos descobrir as feridas das pessoas depois de termos dormido alguns meses com elas. Ela tinha cabelos compridos nessa época, usava apenas ganga e casacos largos, estava a estudar para o mestrado em gerontologia pela U.C. Berkeley. Eu tinha acabado de voltar para S. José depois de quatro anos em Nova Iorque. Tinha obtido um bacharelato em guitarra clássica pela Manhattan School of Music.

Lana teve sempre grande interesse pelas pessoas idosas porque Winky, a sua avó materna, era um ponto de luz na sua vida. Winky era de Oxford, no Mississipi, e quando Lana era criança Winky costumava sentá-la no seu colo e contar-lhe histórias bordadas de palavras e pessoas antiquadas. Lembro-me de uma história em especial sobre um elegante mulato de Nova Orleães que trabalhava como mordomo para uns primos de William Faulkner. Um dia, esse «cavalheiro de modos impecáveis que falava francês melhor do que qualquer embaixador francês» simplesmente desapareceu sem deixar rasto. A outra de que sempre me lembro era sobre uma rapariga branca de dezoito anos chamada Irene «com caracóis nos cabelos como os de Mary Pickford», uma mãe solteira que engravidara do primeiro pediatra negro do condado de Lafayette. Irene foi mandada para casa da irmã do seu pai, a tia Harriet, em Little Rock. Nunca mais viu o seu amante. O bebé, a quem chamaram Isaac, foi dado para adopção em Memphis. O coração de Irene ficou partido.

Winky contou-nos que ela e os pais deixaram o Mississipi durante a Depressão e encontraram trabalho imigrante nos pomares de pêssego que então cobriam S. José. Só muito mais tarde percebemos que era mentira. Há oito anos, quando ela morreu, encontrámos uma mala de pano na parte de baixo de um armário do seu apartamento em Menlo Park, e dentro dela estava a fotografia de uma velha senhora de rosto enrugado com um vestido escuro de gola alta. Na parte de trás da fotografia estava escrito num sarrabisco de Winky: tia Harriet, Março de 1933. Encontrámos também algumas dúzias de cartas para Winky, enviadas pelos seus pais, todas com carimbo postal de Oxford e todas endereçadas a 722 Clarion Way em S. José. É óbvio que a família não se mudou com ela para a Califórnia. Quanto à tia Harriet, era sem dúvida tia de Winky, e não parente de nenhuma Irene. Na verdade, nunca existiu Irene alguma. Ou melhor, apercebemos-nos de que Irene era Winky, que ela tinha ido em exílio para a Califórnia depois de ter tido um filho de um homem negro com quem não era casada. Claro que as cartas dos seus pais não faziam referência a isso, pois família sulista que se prezasse daria o seu melhor para esquecer esse género de coisas.

Confirmámos uma parte desta história pela consulta de uma lista telefónica de S. José de 1940 que tinha sido convertida em microfilme pela biblioteca pública. Morgan era o apelido que Winky tinha tido antes de casar com o avô Don, pai da mãe de Lana. No microfilme descobrimos o nome Harriet Morgan. Era provavelmente a tia Harriet, pois o endereço que lá constava era o mesmo das cartas, 722 Clarion Way. Conduzimos quarenta milhas, de S. Francisco para S. José, perdemo-nos numa avenida sinistra bordejada de bombas de gasolina e stands de carros, e por fim encontrámos uma casa feita de ripas de madeira, pequenina e antiga, com hidranjas na entrada, bem no meio de um bairro chicano. Foi aqui e não em Little Rock que Winky, sob o nome de Irene, «passou anos a olhar fixamente para a janela, sempre para leste, em direcção a Oxford e à vida de que tinha sido excluída».

Escrevemos para a polícia de Memphis e para alguns hospitais da área, mas nunca soubemos o que aconteceu ao bebé de Winky. Talvez não tenha sido dado para adopção em Memphis. Talvez o seu nome não fosse sequer Issac. Mas algures perto de Oxford Lana deve ter um tio-avô e talvez alguns primos em segundo grau que nunca encontraremos.

A mãe e o pai de Lana alegavam nunca ter ouvido nada sobre a vida de Winky antes de ela se ter casado com o avô Don. Não acreditámos neles, mas não estávamos dispostos a insistir no assunto.

Suponho que levo essas coisas muito a peito, mas todas as descobertas sobre Winky realmente me aborreceram. Claro que não foi por ela ter tido um filho sem ser casada. Ou porque se apaixonou por um homem negro. Foi porque que ela teve de desistir tanto dele como do bebé e mudar-se para o outro lado do país para escapar ao passado. E admito que fiquei magoado por ela nos ter mentido sobre tudo isso. Lana não ficou. «Pensavas mesmo que todas as histórias da Winky eram toda a verdade e nada mais que a verdade?», perguntou com tanta descrença na voz que nem me incomodei em responder.

Quando conheci Lana, ela não estava apenas a estudar gerontologia em Berkeley, mas também a trabalhar como empregada de mesa três noites por semana no Paprikas Villa em Ghirardelli Square, e a fazer comédia stand-up nas noites de sexta-feira e sábado. Em Maio de 1977, decidimos alugar juntos a casita em S. Francisco, que acabámos por comprar três anos mais tarde quando o proprietário faleceu. Lana era uma rapariga incrivelmente ocupada na altura. Mal tínhamos tempo para fazer amor. Mas era emocionante, também. Fez algumas vezes a primeira parte do show de Robin Williams no Holy City Zoo e improvisações com Dana Carvey no Fanny’s. Mais tarde, quando percebeu que não estava interessada em passar uma década em clubes de comédia para conseguir chegar ao Tonight Show, começou a trabalhar num guião. Finalmente, depois de ter concluído o mestrado, comprou uma câmara de vídeo e uma ilha de edição, e começou a fazer vídeos de casamentos e bar-mitzvahs. «Ninguém percebe, mas eu faço filmes à Andy Warhol», costumava dizer-me. «Histórias orais avant-garde». No início, eu não estava convencido, mas é mesmo verdade. Porque, juntamente com as cenas do costume, ela entrevista parentes próximos dos noivos e do rapaz do barmitzvah, para que as pessoas que assistam aprendam algo sobre a história da família em questão. Ela filmou uma avó italiana entoando canções de debulha que aprendera nas colinas da Calábria; um alfaite judeu de noventa anos que testemunhou a sublevação do gueto de Varsóvia; velhos rezingões irlandeses falando sobre as greves nos têxteis em Nova Iorque, quando eram espancados pelos primos polícias. Estamos casados há dezassete anos, e eu sou o seu maior fã. Do que mais gosto é de quando as pessoas nos vídeos falam sobre os acontecimentos que fazem girar as nossas vidas. Essa é a informação que ela realmente tenta obter. Sonho que um dia ela será descoberta e farão uma retrospectiva dos seus filmes no Pacific Film Archive. Já tenho até o título: Fulcros Pessoais: os Vídeos de Lana Salgueiro Sanderson.

Lana gosta de ter o som da guitarra clássica nas suas produções. Por isso grava-me a tocar suites de Bach ou prelúdios de Villa-Lobos, ou o que quer que seja, na sala de edição, e depois transfere a música para os vídeos. Tirando isso, todos os meus outros rendimentos provêm de aulas particulares de guitarra na U.C. Berkeley e no S. Francisco State. Faço jardinagem ao fim-de-semana, preparo comida tailandesa pelo menos uma vez por semana, assisto aos jogos dos Giants no Canal 2. Adoro viver perto de Castro Street e poder sentar-me do lado de fora do Café Flore. Do pátio de madeira, observo cenas que são invulgares noutros lugares da América – homens gay a beijar-se em público, estudantes de faculdade com as pontas do cabelo cor-de-rosa a beberricar espresso, a neblina a serpentear ao redor das colinas de Twin Peaks ao final da tarde. Gosto de ir a livrarias e caminhar no centro da cidade entre os homens de negócios. Gosto de olhar para os arranha-céus. Sou feliz. Em todos esses anos de casamento com Lana não me senti tentado uma única vez a levar uma lâmina aos pulsos ou coisa do género. Podemos por isso talvez descartar a possibilidade de uma causa genética para a tentativa de suicídio e desaparecimento do meu pai. Talvez ele se tenha apenas cansado de nós. Certa vez, no Phil Donahue Show, ouvi um pai que tinha abandonado a mulher e os filhos dizer simplesmente isso. Parece absurdo, mas às vezes acontece.

Ultimamente, tenho pensado no meu pai, em Lana e no meu passado mais do que gostaria, não tanto por causa do comentário do autor que li na Biblioteca Pública de S. Francisco, mas porque o irmão mais novo de Lana, Denny, foi expulso de casa dos pais há uma semana e desapareceu por uns dias. Não acho que eu tenha dormido mais do que quatro horas por noite desde então. Fico com muito calor debaixo das cobertas, e depois com muito frio. E depois os músculos das minhas pernas começam a enrijecer e a doer. Logo a seguir, tudo o que faço é pensar no meu pai.

Ao que parece, Denny assaltou uma mercearia de esquina. O dono, por alguma razão, não prestou queixa, portanto ele não teve que se preocupar com a prisão. Mas Mr. Salgueiro, o pai de Lana e Denny, decidiu que não queria correr o risco de receber mais visitas da polícia de S. José e disse ao filho para desaparecer. O rapaz foi-se apenas por alguns dias. Os pais nunca ligaram para Lana para lhe dizer. Quando ela lhes telefonou, como faz domingo sim, domingo não, a mãe explicou a situação e disse: «Ele tem dezassete anos. Fizemos tudo o que podíamos. A vida é dele».

Ainda impedido de entrar em casa dos pais, Denny voltou e foi dormir na garagem. Lana conduziu até S. José para falar com ele e tentar arranjar uma solução de compromisso com os pais. Quando lhe perguntou onde tinha ido, o irmão disse: «Fui-me embora e pronto», e não dizia mais nada.

As negociações nem chegaram a começar. Mr. Salgueiro disse, «não quero aquele filho da puta na minha casa», tirou uma cerveja do frigorífico, deixou-se cair frente à televisão e ficou por aí. A língua foge-lhe para o português quando está danado ou bêbado. Lana diz que «filho da puta» quer dizer literalmente son of a whore, mas é o equivalente ao nosso son of a bitch.

Presumo que o meu pai seria também vago a respeito de onde tinha ido se eu pudesse encontrá-lo. Embora ele agora deva estar a comer flores pela raiz em algum cemitério de La Jolla, elegante e bem desenhado, reservado para mecânicos-jardineiros. Pelos vistos, estes cemitérios para tipos específicos de pessoas são a nova moda; da última vez que estive na livraria Gaia vi um anúncio na revista American Yoga de um cemitério em Orange County para os devotos da Deusa da Nova Era e outro na Vegetarian Lifestyles de um cemitério nos arredores de Austin, no Texas, reservado para pessoas que tenham sido vegetarianas e não-fumadoras. É isto que me faz por vezes pensar que na América de hoje as coisas estão um pouco mais do que apenas erradas. Como se nos tivéssemos todos passado com a pressão. Embora o meu pai possa ser uma excepção, estar casado, com três filhos lindos e um collie, uma vida ao estilo de Uma Casa na Pradaria, numa vila no Midwest onde as pessoas ainda deixam as portas abertas à noite. Afinal, talvez o problema fôssemos nós – quero dizer, eu e a minha mãe. Ela deu-me a entender isso uma vez. Estávamos em casa da tia Liz para jantar e elas as duas estavam podres de bêbadas de gin tónico. Devia ter cerca de dezasseis anos, estava a tentar ver um jogo dos Warriors na televisão. «Antes de nos casarmos, Charles era um espectáculo», disse a minha mãe, falando com a tia Liz sobre o meu pai suficientemente alto para ter a certeza de que eu a ouvia. «Costumávamos vaguear juntos. Dançar em North Beach. Comer burritos em Mission. Ele era divertido. Mesmo divertido! Depois casámo-nos, e de repente estou a viver com um impostor. Sempre zangado. Mau. Já não gosta em mim aquilo de que gostava antes. Até começou a dizer que as minhas mamas eram demasiado grandes! Quando tivemos o Charlie, acabou-se. Não me queria tocar. Como se só então tivesse percebido que é por foder que se tem um filho».

Uma noite, mesmo antes de morrer, a minha mãe, que estava na altura connosco, entrou no nosso quarto a chorar. Lana estava na sala de edição. Eu estava sozinho com a minha guitarra, a ensaiar uma peça nova de Leo Brouwer. Ela pôs-se diante de mim, com lágrimas a correr-lhe o rosto. Já tinha então uma papada e cabelo cinzento fino que deixava solto durante a noite. «Sinto-me tão enganada», lamentou-se. «Eu era virgem quando me casei com o teu pai. Olha o que ele me fez».

Estava prestes a dizer, «Então tu é que te sentes enganada...». Mas calei-me e fui ter com ela. Lana diz que não acredita que eu nunca lhe tenha dito o que sinto. Mas por que haveria de o fazer? Isto é, assim que o meu pai nos abandonou a minha mãe deixou de me ver ou ouvir.

*
Três dias atrás, uma noite depois de Denny se ter mudado para a garagem dos pais, Lana acordou-me às duas da manhã e disse «Temos de fazer alguma coisa».

«Sobre o quê?»

«Sobre o meu irmão.»

O barulho dos guaxinins empenhados em deitar abaixo os nossos caixotes do lixo chegou-me aos ouvidos. Levantei-me. As traseiras eram mesmo escuras, mas conseguia ver as espatas brancas dos lírios-da-paz a brotar por entre a relva como bouquets de ouvidos ansiando pela minha resposta.

«Aquelas pestes andam outra vez atrás do nosso lixo», disse eu. «Vamos ficar com borra de café espalhada por todo o lado».

«Charlie», disse ela, «temos de o ajudar».

«O que podemos fazer? Ele tem dezassete anos. Mora com os pais. E nós
temos Caroline».

Caroline era uma velha amiga minha dos meus dias de estudante de música em Nova Iorque. Estava connosco há uma semana e ia ficar por mais cinco dias. Gosto muito dela, mas requer imensa atenção. Não queria mais uma responsabilidade.

«Continuamos a ter de fazer alguma coisa», insistiu Lana.

«Como por exemplo?»

«Podíamos acolhê-lo».

«Ah não, isto é entre ele e os teus pais. Não me vou meter no meio».

«No meio de quê?»

«Da tua família».

Ela sabia muito bem o que eu queria dizer com aquilo. Há muito tempo atrás, chegámos à conclusão de que se os pais dela fossem plantas velhas seriam ervas daninhas com espinhos, picando tudo o que passa. No entanto, podia dizer pela maneira como o queixo dela latejava que estava prestes a berrar, e então disse, «Olha, quando Caroline for embora, discutimos o assunto. Vamos visitar os teus pais e resolver o problema como adultos».

«Mas é que Denny está completamente sozinho», disse ela.

«Vamos arranjar uma solução. Prometo».

Mas estava a mentir. Não tinha intenção de arranjar solução nenhuma. Pensei que passados mais alguns dias os pais o deixariam entrar, ou ele fugia ou acontecia algo que nos safasse. Foi um erro; Lana consegue perceber sempre quando estou a mentir. Não acho que tenha algum radar especial. Acho apenas que eu não tenho jeito para isso. A minha voz deve mudar ou algo do género. Por isso ela pôs-se a berrar, acusando-me de ser cobarde e de não querer enfrentar os pais dela. É uma discussão que já tivemos antes. Normalmente, só fico amuado. Mas desta vez disse-lhe honestamente a verdade. Suponho que tenha sido por ter dormido pouco. «Tu é que és cobarde», disse-lhe. «Nos últimos vinte anos tens evitado dizer-lhes o que realmente pensas».

Lana ficou muito tempo a olhar os lírios-da-paz pela janela. Pouco depois, aproximei-me dela por trás e ficámos juntos a ouvir os guaxinins pulando sobre as latas do lixo.
*

No dia seguinte, acordei e encontrei o fogão limpo. É feito de alumínio. Estava a brilhar como uma moeda recém-cunhada.

«Limpei-o com uma solução que fiz misturando bicarbonato de sódio e vinagre», explicou Caroline.

«Está fantástico», disse eu.

Caroline tem andado com energia de sobra para as limpezas porque está a recuperar de uma bulimia. Ela costumava vomitar até oito vezes por dia e passava grande parte do resto do tempo a pensar sobre a sua doença. Como ela conseguia dar tantas aulas de violino, nunca saberei. De qualquer forma, agora reduziu para duas vezes por dia. E está mesmo com melhor aspecto. Era uma trinca-espinhas. Agora já tem contornos mais suaves. Apesar de ainda ter aquela cara chupada, aqueles olhos esbugalhados. O cabelo aparado curtinho também não ajuda, parece acentuar todos os ângulos dos ossos. Os novos hobbies com que ocupa o seu tempo livre são o tricot e a cerâmica. O colete vermelho que começou a fazer para mim há três dias já tem a parte da frente pronta. Quanto às limpezas, todas as latas da nossa dispensa têm a tampa limpa; as nossas facas de cozinha estão sempre afiadas; e a nossa casa de banho parece tirada de um anúncio televisivo. Ela chegou a deitar lixívia nas cortinas do chuveiro e a passar a ferro os tapetes felpudos da casa de banho. Nem sabia que era possível passá-los a ferro. Se querem uma casa higiénica, Caroline e eu concordamos, contratem uma bulímica em recuperação. Já lhe pedi que pintasse o exterior da casa no próximo ano. Quarto e comida pelo tempo que for preciso.

Lana e eu somos as únicas pessoas a quem Caroline contou sobre a sua bulimia. Quer dizer, para além do psicólogo e do seu grupo de ajuda. Não me lembro exactamente de quando me contou. Pensou que eu ficaria horrorizado, mas esse tipo de coisas não me horroriza. Penso que não sou muito de julgar as pessoas. Tirando o meu pai, é claro. Talvez o julgue em demasia e não sobre para mais ninguém. Portanto, assim que Caroline soube que estava segura comigo e com Lana, os pormenores da sua vida começaram a vir à tona. Ela conta-nos sempre um pouco mais a cada ano que nos visita. Primeiro, eram as histórias sobre a avó que a criou e a maltratou. O pai de Caroline tinha sido morto na Segunda Guerra. E quanto à sua mãe, suponho que trabalhava o dia todo. Caroline fala inglês fluentemente, e tenho tendência a esquecer que é na verdade alemã, de uma cidadezinha nos arredores de Bona. Veio para os Estados Unidos há trinta e quatro anos com uma bolsa de estudos, quando tinha só vinte e um. Escolheu a Universidade da Virgínia e tirou um bacharelato em História, e só mais tarde começou a levar a sério as suas aulas de violino. Suponho que por a sua família ser alemã sempre imaginei a avó como a bruxa de Hansel e Gretel. Ela costumava bater em Caroline a torto e a direito. Com toalhas molhadas porque não deixam marcas permanentes. O maior canalha, no entanto, era o seu padrasto. Ele forçava-a a chupar-lhe a pila. Essa é a terminologia que Caroline utiliza. Só este ano é que ficámos a saber que ele era o médico da cidade, Herr Doktor, um homem muito respeitado. Foi logo depois do fim da Segunda Guerra e as pessoas sobreviviam à custa de nabos. A família conseguiu carne e açúcar através do bom doutor e ele teve Caroline em troca. Dos doze aos dezanove, ele forçou-a a chupar-lhe a pila, enquanto a família se empanturrava de vitela e apfel strudel. Há dois dias, Caroline confessou-nos que quando o estupor morreu ela chorou. Perguntei-lhe porquê, como é óbvio, e ela disse, «Acho que o amava». Mas disse-o como se fosse uma pergunta.

Aparentemente, a relação entre abusador e vítima é mais complicada do que alguma vez pensei. Suponho que eu seja bastante inocente quanto a esse tipo de coisas. Levei palmadas algumas vezes e gritaram-me muitas outras, mas nunca fui tratado de forma rude. Por isso creio que sou algo ingénuo em relação ao lado escuro da vida das pessoas. Como quando Lana me contou que o seu irmão Denny devia ter um pai diferente do dela. Fiquei chocado. Depois, começou a fazer sentido, é claro; ele é vinte e um anos mais novo do que ela, e não acredito nem por um momento que os pais ainda estivessem a ter relações sexuais na altura. Assim, a minha sogra deve ter tido um caso quando tinha mais ou menos quarenta anos, provavelmente pensou que nunca iria engravidar. Embora não consiga pensar em ninguém que lhe quisesse pegar. Quando disse isso a Lana, ela disse que provavelmente tinha sido o carteiro. Aparentemente, estava só meio a brincar; ela diz que ele tinha o cabelo ruivo de Denny.

Lana e eu não falámos sobre isso, mas ambos sabemos que o caso da mãe dela tinha sido a verdadeira razão pela qual Mr. Salgueiro chamou Denny de filho da puta quando Lana foi a S.José para tentar conseguir uma trégua. O que ele estava realmente a dizer é que pensa que a mulher é, de facto, uma whore, uma puta.

Caroline contou-nos há alguns dias que, antes de vomitar, ela sente como se estivesse coberta de percevejos. Que queria muito deixar cair essa pele, e dela sair nova em folha. Ela vai a reuniões de um grupo de bulímicos uma vez por semana no Hospital North Shore em Long Island. Todos eles querem uma pele nova.

*

Esta noite penso nisto tudo porque não consigo dormir. Desde cerca das duas até as quatro da manhã, limitei-me a ficar a ouvir os guaxinins no quintal e perdi-me em pensamentos.

Quando observo Lana em noites assim, percebo a sorte que tenho tido. Durante muitos anos pensei que não seria capaz de amar alguém. As pessoas sempre diziam que eu era frio. Um professor de guitarra que tive no liceu disse-me que eu não tinha paixão. A minha mãe disse-me certa vez que achava que eu estava morto por dentro.

Ponho-me muitas vezes a suar frio, a pensar que possam ter razão. Que talvez tenha arruinado a vida de Lana. Afinal, ela queria ter filhos e nunca concordei. Ela está com trinta e oito anos. Daqui a dois ou três, será tarde de mais. Ela diz que não se arrepende, mas às vezes não tenho certeza disso.

Este tipo de culpa começou a invadir-me os pensamentos por volta das quatro da manhã. Deve ter sido o poder da sugestão, mas senti-me um pouco como Caroline, como se a minha pele fosse demasiado exígua. Então vesti-me sem fazer barulho, e desci as escadas furtivamente. Quando fechei a porta atrás de mim, senti-me bem. O ar era fresco e frio. Castro Street estava vazia. Entrei no meu Honda e comecei a guiar.

Desci desde Market Street até à auto-estrada 101 e segui em direcção ao sul. A velha casa dos meus pais fica numa rua lateral a Lafayette Street em S. José, bem perto do aeroporto. Pensei em dar uma olhadela, mas quando alcancei a saída cerca de quarenta e cinco minutos mais tarde, prossegui. A sensação foi boa, como se tivesse sido libertado de uma servidão com que nunca concordara. Fez-me pensar se meu pai se tinha sentido assim.

*

Não há mais pessegueiros em S.José, e a cidade estendeu-se num emaranhado de avenidas com lojas de fast-food e bairros residenciais – como Los Angeles sem a UCLA, ou o County Museum ou as praias para a redimirem. Recusei-me categoricamente a seguir o caminho que Lana e eu fazemos até a casa dos pais dela, numa das novas vizinhanças de «sonho suburbano», junto às colinas de Los Gatos. Por isso, vagueei distraidamente por mais meia hora antes de encontrar Alpendra Drive. Quando estacionei frente à «Casa do Inferno» – que é como Lana, Denny e eu chamamos ao lar da família – ainda não sabia o que estava a fazer. Pensei que queria dizer a Mr. e a Mrs. Salgueiro que eram uns imbecis que não tinham o direito de ter filhos e não os amar. Mas não era isso.

Encontrei a porta da garagem fechada. Agarrei o trinco e levantei-o. «Quem está aí?», veio a voz de Denny, apressada e assustada.

«O idiota do teu cunhado».

«Charlie?»

«Tens outro?»

Ouvi o som de pés sobre pano, e a luz acendeu-se. Denny estava em roupa interior, de pé sobre o saco-cama. Ele é um miúdo magro. Pálido de mais para a Califórnia. É verdade que tem uns belos olhos verdes, mas faz de tudo para parecer estranho. Como, por exemplo, o cabelo – é tingido o mais preto possível, cortado rente de lado, mas espesso no topo. E tem um brinco de esmalte, do tamanho de uma moeda de vinte cêntimos, com a forma de uma cabeça de alho, na orelha direita. Comprou-o no Verão passado em Gilroy quando eu, ele e Lana fomos ao Festival do Alho.

«O que fazes aqui?», perguntou num sussurro.

«Não podes continuar a dormir numa garagem».

«Fala baixo, vais acordar os meus pais», disse-me.

«Pensas que me importo? Não durmo bem há uma semana. Por que haviam eles de dormir?»

«Queres dizer que não tens dormido bem por minha causa?»

«Por tua causa e de Lana. E do meu próprio passado. Comigo às vezes tudo se mistura».

Olhou para baixo, a considerar as suas opções. «Ela mandou-te vir aqui?», perguntou.

«Não. A responsabilidade é minha. Vai, veste-te. Estou cansado».

«Não posso ir contigo».

«Por que não?»

«A escola. Ainda tenho dois meses de aulas».

«Podes ir à escola em S. Francisco».

«Não posso pedir transferência nesta altura. E terei de repetir o ano se desistir agora. Não serei capaz de começar a faculdade no Outono».

«Preocupamo-nos com isso mais tarde».

«Não, não posso ir», disse categoricamente.

O velho Pontiac preto de Mr. Salgueiro estava estacionado na garagem.

«Este carro é mesmo feio», disse eu a Denny. Ele sorriu. Tem um sorriso bonito. É um bom miúdo, um pouco perdido e sozinho, mas quem não o estaria no seu lugar? Apercebi-me pela primeira vez de quanto gostava dele. É estranho como conseguimos viver durante anos sem realmente sabermos este tipo de coisas. Disse-lhe, «Ouve, já tens a carta de condução?»

«Porquê?»

«Tens ou não?»

«Sim, tenho».

«Óptimo, então podes levantar-te um pouco mais cedo do que o costume e conduzir até à tua escola desde S. Francisco. Demoras menos de uma hora».

«Com o carro de quem?»

«Com o meu ou o de Lana».

«Como é que vais para o trabalho?»

«Denny, podemos ficar aqui a noite inteira a discutir isto. Veste-te lá e anda comigo. Dezassete anos disto é suficiente. Não estou a dizer que devas desistir dos teus pais. Mas Lana tem um bom coração. E gosta de ti. Não posso dizer o mesmo dos ocupantes da Casa do Inferno. O que achas?»

«Acho que eles gostam de mim», disse.

«Talvez. Talvez eu não compreenda o amor. Não sei. Nem quero saber. A verdade é que estás fechado fora de casa e o teu pai não te vai deixar entrar. Se queres viver a tua vida como um refugiado, podes fazê-lo. Se queres ir para casa comigo agora, podes fazê-lo também. A escolha é tua».

Os miúdos aturam demasiadas coisas dos pais, e eu percebi que ele estava prestes a rejeitar a minha oferta. Por isso disse-lhe para tentar ficar connosco durante uma semana para ver se resultava. No carro, falámos sobre o roubo. Pelos vistos, as coisas eram mais complicadas do que eu pensava.

Ele disse, «Vais ser a primeira pessoa com quem eu falo disto».

Por vezes, pergunto-me por que razão as pessoas se abrem comigo. Caroline diz que é porque nunca me mostro surpreendido. Quando está numa onda esotérica, diz que sou a reencarnação de um ser muito velho que já viu de tudo. Quando está assim chama-me «O Observador». Suponho que devia sentir-me lisonjeado, mas confesso que não me agrada muito.

«Força», disse eu a Denny. «Não pode ser assim tão mau».

Ele abanou a cabeça. «É pior».

«Então... o que foi?»

«Não podes contar a meus pais. Nem mesmo a Lana». A voz dele estava a suplicar.

«Não vou dizer nada a teus pais. Quanto a Lana, não faço promessas. Quando nos deitamos na cama à noite digo coisas que...»

Antes de eu conseguir acabar a frase, ele disse, «Eu... eu sou gay».

Arrancou aquilo de dentro de si como se esperasse que eu pisasse os travões ou começasse a arrancar cabelos. Não posso dizer que alguma vez tenha suspeitado, mas por outro lado não fiquei chocado. Disse, «Denny, quando vivemos na Bay Area deixamos de pensar que ser gay ou heterossexual faz alguma diferença.»

«Estás errado. Ainda faz diferença em S. José. Não é como S. Francisco». Denny cerrou os punhos. «As pessoas aqui... é como se S. Francisco fosse uma ilha de casas lindas e cafés e livrarias e a porra de uma centena de restaurantes chineses. S. José... S. José, pá, tem... tem pessoas que vêem o Monday Night Football e bebem cerveja e só querem acabar o dia sem terem de aturar muitas chatices dos filhos. Pessoas que iriam detestar os filmes de Lana».

Sabia que o que Denny estava a dizer era em grande parte verdade, mas que estava a falar acima de tudo de seu pai. Eu disse, «Explica-me apenas o que ser gay tem a ver com roubar uma mercearia».

«Não é apenas uma mercearia. Tem uma secção onde as pessoas podem alugar filmes. É um sítio esquisito».

«Continua».

«Não sei,» disse ele. «Fi-lo, apenas».

«Não me convences».

«É o novo gerente. Um imigrante turco. Talvez com trinta anos. Fui lá um dia comprar cigarros...»

«Começaste a fumar?»

«Eram para o meu pai».

«E o que aconteceu?»

«E começámos a conversar. Foi durante o dia, mas não estava lá ninguém. Estávamos a conversar sobre a Turquia porque reparei no seu sotaque. Disse que tinha algumas fotografias de Istambul na parede da arrecadação. Trancou a porta da entrada e fomos para lá. Depois ele pôs-me a mão em baixo e agarrou-me a pila. Quero dizer, apalpou-me através das calças de ganga».

«E depois?»

«Bem, fez-me um broche. Foi a primeira vez... a única...»

A sua voz estava engasgada. Para o pôr à vontade, perguntei-lhe se tinha gostado.

Ele riu-se como quem está prestes a chorar. «Nem por isso. Estava demasiado nervoso. Depois, pensei que não era realmente gay porque não gostei mesmo nada».

«A minha primeira vez também foi horrível», disse eu. «Se olhares de perto, acho que ainda dá para veres as marcas de dentes na minha pila».

Denny não se riu desta vez. Ele perguntou, «Charlie, achas que eu sou mesmo estranho?»

«Não».

Ele roía a unha do polegar enquanto olhava pelo pára-brisas.

«Olha», disse eu, «se queres fazer um estardalhaço do facto de seres gay, faz. Mas estou contente por teres descoberto agora e não depois quando...»

Estava prestes a dizer «… estiveres casado e tiveres um miúdo de sete anos». Surpreendi-me com isso. Mas ser gay pareceu-me de repente ser uma hipótese para o meu pai. Talvez nos tenha deixado por se sentir culpado. Talvez afinal não tenha tido a ver comigo e com a minha mãe. Talvez ele tenha pensado que ele é que era o culpado, que estava a arruinar as nossas vidas, e que acabaria por fazer de mim gay se ficasse. Comprou sementes de cem catálogos diferentes. Começou a dizer que as minhas mamas eram demasiado grandes. Terá sido essa a forma tresloucada da minha mãe o dizer…? Terá sido isso?

«Quando o quê?», perguntou-me Denny.

Eu estava desorientado e não respondi, por isso ele disse, «Por que estás contente por eu ter descoberto agora? Quero saber».

«É que quanto mais cedo perceberes esse tipo de coisas, melhor. Evita complicações».

«Não sei ao certo o que queres dizer com complicações», disse ele. «Parece-me demasiado complicado».

«Pouco importa agora. Falamos disso depois. De qualquer forma, voltaste a visitar o turco».

«Sim, uns dias depois. E ele voltou a fazê-lo».

«E dessa vez gostaste».

Ele sorriu, tímido. «Mas ao sair da mercearia, não sei porquê, fiquei zangado com o tipo, e roubei alguns filmes da prateleira. E corri. Foi como se tivesse que me vingar dele. Ele chamou a polícia para ter os filmes de volta. Mas não apresentou queixa. Creio que não queria que soubessem da nossa história».

*

O sol estava a nascer sobre a baía quando chegámos a casa em S. Francisco. Lana e Caroline já estavam sentadas à mesa da cozinha. Tinham acabado de servir café, estava a fumegar das canecas de cerâmica que Caroline fez para nós este ano. Eram de um amarelo acastanhado, com íris púrpuras esmaltadas por fora.

Caroline estava a usar o seu quimono rosa, mexia numa tigela uma mistura de iogurte, levedura e vitaminas em pó que toma todas as manhãs para compensar os nutrientes que perde na casa de banho duas vezes por dia. Lana vestia calças de fato-de-treino e uma das minhas camisolas da equipa de basebol dos Giants. Quando viu Denny, saltou e abraçou-o. Enquanto ela dançava com ele pela cozinha, contei a Caroline um pouco do que tinha acontecido. Depois sentámo-nos falando dos pais de Lana e de Denny. Quando estava para começar a minha segunda torrada, Caroline abanou a cabeça, como faz quando está prestes a soltar uma pergunta bem directa, e disse, «O que te fez ir lá ter com o Denny e trazê-lo?»

Falei-lhes então sobre o comentário do autor que li na biblioteca. Eu disse, «Pelos vistos, esse autor escreve sobre pessoas como eu, que às vezes choram quando se deparam com situações difíceis, mas não fazem nada. Por isso decidi-me finalmente a seguir em frente e fazer alguma coisa».

«Isso são tretas», disse Caroline.

«O quê?», disse eu.

«És cego, ou quê? Quem achas que conseguiu uma bolsa de estudos para a escola de música, que toca como um anjo, que juntou dinheiro suficiente para dar uma entrada para esta linda casa? E quem achas que faz o teu casamento funcionar? A tua mãe?... O teu pai?... E por que achas que estou aqui? Porque és um cretino que não sabe fazer nada?»

O que ela disse aborreceu-me. Creio que nunca tinha pensado ser tão responsável pela forma como a minha vida tinha corrido. Fingi que estava cansado para fugir da pressão do seu olhar. Levantei-me e disse, «vou voltar para a cama».

«Não estás zangado comigo?», perguntou-me Caroline com uma voz hesitante. Tinha os ombros aninhados e parecia que ia começar a chorar.

Fui tomado por uma sensação verdadeiramente estranha – que a tinha juntado, a ela, a Lana e a Denny, naquela manhã, por uma razão que ia muito mais além dos problemas de Denny com os pais. Senti-me como se precisasse da protecção deles. «Não, não estou zangado», respondi. «Um pouco confuso, talvez. Acho que tenho de pensar sobre tudo isto quando estiver mais desperto. Talvez então faça sentido».

Lana pegou na minha mão e levou-me até às escadas. Deixámos Denny com Caroline. Ela explicava-lhe por que punha levedura no iogurte. Então Denny chamou por mim. «Obrigado por teres ido buscar-me – por me teres salvo de S. José», sorriu.

Não respondi com palavras, acenei apenas. Olhar para ele fez-me perder a voz. Porque foi então que eu percebi que o que mais me magoara é que o meu pai nunca tinha dito nada sobre o facto de eu ter ligado para o 911 e ter salvo a sua vida, nem sequer me agradeceu. Era como se eu tivesse cometido algum erro pelo qual iria pagar o resto da minha vida. E que haveria de o pagar não tendo nunca a minha própria família.

Michael Fieni