História de Duas Polónias

30 March 2015

História de Duas Polónias
(fotografia - a sepultura de Marek Edelman) 

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Tradução de "A Tale Of Two Polands", de Richard Zimler, pelos alunos do Mestrado em Tradução e Comunicação Multilingue 2011-2013 da Universidade do Minho, sob coordenação de Ana Maria Chaves, no âmbito do Projeto Pen Pal - Portuguese-English Platform of Anthologies of Literature in Translation

Itzhak Gutkind, o pai da minha mãe, cresceu numa moradia de três andares em Brzeziny, uma cidade buliçosa no centro da Polónia, coração da indústria têxtil. Naquela época, finais do século XIX, as casas geminadas, de estilo vitoriano e pintadas de cores garridas, eram habitadas por uma miscelânea de 7500 judeus, 5000 polacos, 1200 alemães e várias centenas de russos. Três mil dos residentes desenhavam e confecionavam roupa em pequenas fábricas e ateliês familiares, e a maioria dos rapazes judeus – incluindo Itzhak, mais conhecido por Iccy – eram aprendizes de alfaiate. Como convinha à região têxtil mais importante da Europa central, com clientes vindos de tão longe como o extremo oriente russo, Brzeziny ostentava uma Grande Sinagoga de estilo neoislâmico, a que não faltavam os minaretes. O meu avô teria ouvido frequentemente o som velado dos cânticos vindos do seu interior, pois vivia com os pais do outro lado da rua.
Nenhum chantre voltou a entoar orações em Brzeziny desde os finais de maio de 1942, quando os soldados nazis aniquilaram o gueto que tinham criado apenas dois anos antes. Cerca de 2000 dos 5800 judeus que tinham sido forçados a viver no gueto – incluindo todas as crianças com menos de dez anos– foram levados diretamente para o campo de concentração de Chelmno e mortos nas câmaras de gás. As 3800 pessoas que restaram foram transportadas para o gueto de Łodź, a vinte quilómetros, desumanamente sobrelotado e dizimado por doenças.
Noventa e cinco por cento dos 200 000 habitantes daquela ilha urbana judaica – uma secção da cidade com uma área de quatro quilómetros quadrados e isolada do resto do mundo – acabariam por morrer de fome ou de doença, ou seriam assassinados em Chelmno ou Auschwitz.
Felizmente, os meus avós, Iccy e a sua mulher, Genendel Kalish, nascida em Brzeziny, nessa altura já tinham emigrado para a América e construído uma vida confortável em Brooklyn. Ruth, a minha mãe, era a terceira dos seus quatro filhos. Mas nenhum dos oito irmãos e irmãs dos meus avós, que ficaram na Polónia, teriam a oportunidade de a conhecer ou de voltar à sua cidade natal. Mesmo hoje, sessenta e seis anos passados sobre o fim da guerra, poderíamos dizer que Brzeziny continua a representar uma vitória para os nazis pois, tal como milhares de vilas e cidades da Polónia, mantém-se Judenfrei – livre de judeus.
Tanto assim é que, quando o meu editor polaco me propôs uma digressão literária pela Polónia por altura da publicação do meu último romance, Os Anagramas de Varsóvia, passado no gueto de Varsóvia em 1940 e 1941, me caiu o coração aos pés e fiquei quase em pânico. Embora a minha mãe já tivesse morrido há alguns anos, era como se estivesse a vê-la, de mãos no ar, como se para mandar parar um carro que se aproximasse veloz, e a gritar: “Não te atrevas!”. Como a maioria dos judeus de origem polaca, ela e os meus avós sempre guardaram mais rancor dos polacos do que propriamente dos nazis, e consideravam todos os polacos como antissemitas até à medula.
Mesmo com a advertência da minha mãe a assombrar-me os pensamentos, decidi ir; percebi que a ida de um neto de judeus polacos à Polónia, para promover um romance passado no gueto de Varsóvia, pode suscitar alguma discussão nos meios de comunicação sobre os 3,3 milhões de judeus polacos que morreram no Holocausto e sobre o que podemos aprender com as suas mortes. De um ponto de vista mais pessoal, viajar pela Polónia dar-me-ia também a oportunidade de visitar a cidade natal dos meus avós, um desejo secreto que acalento há três décadas. E foi assim que, no final de novembro, ao fim de quase setenta anos, fui a primeira pessoa da minha família a percorrer as ruas íngremes e esburacadas de Brzeziny. E no domingo 20 de novembro, pouco antes do meio-dia, vi o que nunca pensei chegar a ver: a casa do meu avô.
Há experiências que guardaremos para sempre connosco. Ali, diante daquela casa lúgubre por pintar – a ver o meu hálito condensar-se no ar gélido e a pensar em quão preocupada, mas surpreendida, a minha mãe ficaria –, sentia-me como se tivesse alcançado o impossível só por ali estar. Depois de subir a escada de madeira e de ter olhado para o terreno vazio onde se erguia outrora a imponente sinagoga, dei por mim a vibrar de exacerbado regozijo, pois o objetivo de Hitler era que nenhum judeu voltasse mais alguma vez a pôr o pé nesta cidade. E, no entanto, aqui estava eu!
Instantes depois, a minha fugaz sensação de triunfo parecia absurda, pois, bem vistas as coisas, conviver com os fantasmas da família numa cidade livre de judeus não podia trazer grande benefício a ninguém a não ser a mim. E, no entanto, essa sensação voltaria a invadir-me várias vezes ao longo da digressão.
A minha visita à casa onde o meu avô cresceu foi possível graças ao diretor do museu local, Paweł Zybała, que tinha passado as últimas semanas a esquadrinhar os registos prediais da cidade. Paweł, um homem atarracado dos seus quarenta anos, parecia quase tão entusiasmado com a minha visita quanto eu, e levou-me a dar uma volta pela cidade, desde o seu museu – o quartel-general da Juventude Hitleriana durante a ocupação alemã – até ao cemitério judeu em ruínas, sem esquecer a praça central. Infelizmente, não vi um único café ou restaurante ao longo de todo o percurso. Quando posámos lado a lado para o fotógrafo enviado pelo jornal local, pus a mão por cima do ombro de Paweł e ele passou o braço por trás das minhas costas. Um judeu e um polaco abraçados em Brzeziny parecia um maravilhoso testemunho de quão distante está a Polónia de hoje dos dias em que pessoas eram transportadas para os campos de extermínio.
E, no entanto, quando estava a entrar no carro, para seguirmos para Łódź, o meu próximo destino, Adam Drzewucki, o jovem agente publicitário de cabelos compridos designado para me acompanhar , disse-me: "Um dos funcionários do museu acabou de me dizer que os habitantes de Brzeziny continuam a ser profundamente antissemitas."

Esta revelação chocou-me. Apercebendo-me de como podia ser facilmente enganado pelo entusiasmo esfuziante que me dominava, decidi conversar com toda a gente com quem tinha combinado encontrar-me – críticos literários, jornalistas da televisão, leitores e livreiros – acerca do estado atual do antissemitismo. E, mesmo assim, recebi tantas respostas contraditórias nos dias que se seguiram que demorei até quase ao final da minha visita para perceber realmente o verdadeiro sentido daquilo que tinha ouvido. Agora, que tive oportunidade de confirmar o meu raciocínio com os meus contactos polacos, eis as conclusões a que cheguei: 1) quanto mais pequena e rural for a cidade, e quanto mais avançada for a idade dos seus habitantes, mais provável é que tenham conservado uma profunda aversão aos judeus e acreditem nos estereótipos tradicionais que os apresentam como gananciosos, muito ricos e uns filhos da mãe que só pensam em acumular dinheiro; 2) tais indivíduos também considerarão a palavra judeu como um tremendo insulto; 3) os jovens que vivem em Varsóvia, Cracóvia e outras grandes cidades têm sentimentos neutros ou positivos em relação aos judeus e mostram frequentemente uma grande curiosidade pela história e cultura polaco-judaicas; 4) com a Polónia mais internacionalizada, mais urbanizada e mais instruída a cada ano que passa, e com a morte dos cidadãos mais idosos que odeiam os judeus, o antissemitismo é cada vez menos comum, o que, de acordo com muitos dos meus contactos, está a acontecer até no seio da Igreja Católica polaca, outrora ferozmente antissemita.
Katarzyna Markusz, uma fotógrafa freelance de 29 anos que passou os últimos anos a pesquisar a história sangrenta dos judeus de Sokolow Podlaski, a sua terra natal, acrescentou uma nuance importante às minhas conclusões durante a nossa entrevista em Varsóvia. Enquanto tomávamos chá no Hotel MDM, na movimentada Praça da Constituição, disse-me:
- Nós, os polacos, dizemos que o país está dividido em duas regiões, A e B. A região A é tudo o que se estende para oeste do rio Vístula (que atravessa ou passa perto de Gdansk, Varsóvia e Cracóvia). É uma região de mentes arejadas e relativamente rica, e os seus habitantes têm os olhos postos na Europa ocidental. A Polónia B é pouco desenvolvida, isolada, mais tradicional, e o seu povo tem os olhos postos no Leste. Na Polónia B o antissemitismo mantém-se forte, enquanto na Polónia A está gradualmente a desaparecer.
Infelizmente para Katarzyna, Sokolow está definitivamente localizada do lado B desta linha psicológica. Como ela mesma me disse:
- A maior parte das pessoas que lá vivem nunca conheceram nenhum judeu e mesmo assim odeiam-nos!
Ela própria já pagou um preço bem alto por ter desenterrado a história do desaparecimento da comunidade judaica da cidade, num total de 5 500 pessoas, e por ter entrado frequentemente em confronto com as autoridades locais e até com a própria família. Ninguém na cidade contrata os seus serviços.
Katarzyna pareceu-me uma daquelas pessoas espantosas e moralmente sólidas, que parecem ingénuas – no seu caso, com um riso fácil e contagioso – mas que não desistem sem dar luta, o que me fez temer pela sua segurança. Mas ela apressou-se a dizer-me que nunca se sentiu fisicamente ameaçada e que está otimista quanto ao futuro das relações judaico-polacas, mesmo na Polónia B. Os seus recentes triunfos trouxeram-lhe ao rosto um sorriso cintilante e foi com os seus olhos negros marejados que me disse:
- A minha campanha para salvar da destruição a Beit Midrash (sala para estudos da Tora), que estava votada ao abandono, foi bem-sucedida!
Depois de celebrarmos essa pequena mas decisiva vitória, Katarzyna contou-me a visita que tinha organizado recentemente, do embaixador de Israel e vários filhos de sobreviventes do Holocausto, a uma escola primária. Num país de 40 milhões de habitantes com não mais de 25 000 judeus, nenhum dos miúdos tinha alguma vez visto um judeu. A transbordar de entusiasmo pelo diálogo ímpar que se estabeleceu, disse-me que vai organizar outra visita em 2012.
Tendo sido alertado para a possibilidade de ser visto, mesmo na Polónia A, como uma espécie de curiosidade, no dia da minha entrevista com Katarzyna alterei o início da conversa que tinha planeado manter com os estudantes de uma escola secundária de Varsóvia, começando por perguntar: “Quantos de vocês já conheceram um judeu?” Apenas 10 dos 65 alunos presentes levantaram a mão, o que me agradou – pois senti que já estava na hora de conhecerem um! – e me fez reconsiderar, uma vez que não estava propriamente ansioso por representar um povo e uma religião.
Os professores na escola secundária Maria Konopnicka tinham escolhido uma aluna que já tinha lido Os Anagramas de Varsóvia para comentar o livro e fazer-me as primeiras perguntas. Para alívio meu, essa aluna, chamada Naomi Di Biasio, descreveu o livro como muito comovente, no seu inglês adorável e hesitante, mas, logo a seguir, ela e outros colegas expressaram duas preocupações que encontrariam eco em quase todas as pessoas com quem falei em Varsóvia, Poznan e Łodź – e que revelavam, penso eu, importantes mas subtis facetas da opinião polaca sobre a destruição da cultura polaco-judaica do país, outrora tão pujante.
A sua primeira preocupação, repetida inúmeras vezes, era que o retrato dos polacos feito por mim no livro poderia ser demasiado negativo. Em Os Anagramas de Varsóvia, o narrador, um velho psiquiatra chamado Erik Cohen, é denunciado por vizinhos cristãos enquanto estava escondido e é preso pelos nazis. Infelizmente, esse era um destino que aguardava muitos dos judeus escondidos. E, no entanto, a maioria dos polacos com quem falei pareciam acreditar verdadeiramente (ou será que apenas queriam acreditar?) que a maior parte dos seus pais e avós tinham feito tudo o que podiam para proteger os seus vizinhos judeus. Contudo, de acordo com o Professor Bohdan Michalski, da Universidade de Varsóvia, especialista no Holocausto, as estimativas mais fiáveis são de que cerca de cinco por cento da população polaca – uma pessoa em cada vinte – acorreram em auxílio dos judeus do país, enquanto outros cinco por cento teriam colaborado ativamente com os nazis.
- E os restantes noventa por cento? - perguntei-lhe.
- Não fizeram nada. Ficaram calados.
O que eu disse aos alunos do liceu Maria Konopnicka foi:
- Antes da Segunda Guerra Mundial, cerca de trinta por cento dos habitantes de Varsóvia eram judeus. - Depois, percorrendo a sala com o dedo e apontando para cada terceiro aluno, acrescentei: - Tu, tu e tu teriam sido judeus. Portanto, não acham que fiz bem ao incluir no meu livro algumas palavras sobre aqueles vizinhos que vos denunciaram à Gestapo ou que não fizeram nada quando vocês foram obrigados a ir para o gueto e daí enviados para os campos de extermínio?
Em seguida abordei dois outros pontos delicados que tinham surgido nas entrevistas com os jornalistas. Primeiro, disse aos alunos que não escrevi o romance para que eles ou qualquer outro polaco se sentissem culpados, mas sim para analisar a coragem diária dos que viviam fechados no gueto e que, apesar disso, conseguiam manter a generosidade, a bondade e até o sentido de humor, e também porque acreditava que a única maneira de podermos sentir emoções mais profundas sobre o Holocausto era criando uma ligação ou identificação psicológica com alguém que tivesse passado por ele. E, em segundo lugar, que tinha tido o cuidado de incluir na história duas personagens polacas maravilhosamente corajosas – uma antiga paciente de Erik, chamada Jasmine, e a sua irmã Lisa, que o ajudaram a fugir de Varsóvia e lhe ofereceram refúgio na quinta de Lisa no leste da Polónia. De facto, uma das questões mais importantes levantadas pelo meu romance pode ser esta: o que há em alguns indivíduos – em particular, na maneira como foram criados – que lhes permite arriscar a própria vida para salvar outras?
Apesar de a conversa com os alunos ter derivado para outros assuntos, não estava certo de que todos tivessem ficado satisfeitos com a minha resposta, porque já tinha aprendido que os polacos têm tendência para se verem a si próprios, exclusivamente, como vítimas dos nazis. Apesar de isso não ser verdade, é verdade que os nazis trataram de facto a Polónia com particular brutalidade e violência – mesmo que os judeus com raízes polacas detestem por vezes admiti-lo. Dois milhões e meio de polacos não-judeus foram mortos durante a Segunda Guerra Mundial; morreram 200 mil só na falhada, mas heroica, Revolta de Varsóvia, em agosto e setembro de 1944, durante a qual o Armia Krajowa, as forças da resistência polaca, tentou libertar a cidade da ocupação alemã, o que deixou Varsóvia totalmente em ruínas.
Como ainda não tinha estado em Brzeziny, havia uma outra coisa importante que tinha aprendido, mas que não podia ainda dizer aos alunos: tinha-me finalmente apercebido de que, ao bombardearem e fazerem explodir fábricas e escolas, matando milhares de técnicos qualificados e eliminando os judeus do país, os alemães tinham destruído a economia da Polónia com tal determinação que muitas cidades outrora prósperas jamais iriam recuperar. A visita à cidade miserável onde os meus avós tinham nascido tinha-me ensinado isso.
O professor Bohdan Michalski tornou esta perspetiva polaca comoventemente clara quando me confidenciou durante o almoço, depois do meu discurso no liceu, que a mãe estava grávida dele, de quatro meses, quando o pai, um cirurgião no Armia Krajowa, o exército nacional, foi apanhado numa rusga nazi de civis e soldados durante uma visita clandestina a casa e levado para o quartel-general da Gestapo. Isto passou-se em setembro de 1944, um mês depois do primeiro dos 63 dias da Revolta de Varsóvia. A mãe de Bohdan também foi presa e separada à força do marido nas escadas do que é hoje o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
- Foi a última vez que a minha mãe viu o meu pai - disse-me Bohdan. - Ela e as outras mulheres foram levadas para um campo de concentração e o meu pai foi levado para o quartel-general da Gestapo. No final da Revolta de Varsóvia foram encontradas centenas de corpos queimados nas traseiras do edifício.
- Mas o que é que os nazis poderiam ganhar com a morte do seu pai? - perguntei-lhe. - Afinal, ele e os outros que foram apanhados na rusga poderiam ter-lhes sido úteis. - Será que ele estava à espera desta minha pergunta tão ingénua? Bodhan é um homem carismático e, com os seus olhos poderosos a brilhar, replicou:
- Já se esqueceu? Os nazis também odiavam os eslavos! Principalmente os cultos.
Esta resposta simples, mas direta, fez-me perceber que, do ponto de vista de Bodhan – e talvez agora também do meu –, a minha pergunta revelava o meu preconceito contra os polacos. De facto, a única pergunta mais absurda teria sido: “O que é que os nazis poderiam ganhar com a morte de todos os judeus de Brzeziny e de todas as outras cidades polacas?”.
Mais tarde, já em casa, fiz uma breve pesquisa e descobri quão profundo era nessa época o ódio que os polacos tinham aos judeus. Heinrich Himmler, comandante da Gestapo e dos campos de extermínio nazis, tinha em mente um futuro arrepiantemente familiar para as pessoas como Bohdan e os seus pais: “Todos os polacos desaparecerão da face da terra… É essencial que o grande povo alemão eleja como sua tarefa principal destruir todos os polacos.”
Também aprendi – tal como Bohdan me tinha dito – que os nazis trabalharam incansavelmente para destruir as classes trabalhadoras polacas logo desde o início da ocupação, no outono de 1939. As estimativas indicam, por exemplo, que o Terceiro Reich assassinou quarenta e cinco por cento dos médicos do país e quarenta por cento dos professores universitários. Além disso, pelo menos um milhão e meio de cidadãos polacos foram levados para a Alemanha para aí trabalharem, muitos deles virtualmente como escravos. E, para aniquilarem a capacidade de reação dos polacos, os nazis executavam publicamente aqueles que resistiam às suas ordens, incluindo os que fossem apanhados a esconder judeus. Só em Varsóvia houve mais de 4500 execuções.
Ainda assim, noventa por cento dos polacos sobreviveram à Segunda Guerra Mundial e, dos judeus do país, apenas sobreviveram dez por cento, ou ainda menos – a maior parte depois de suportarem a horripilante brutalidade e as privações dos campos de concentração nazis, razão pela qual qualquer tentativa para comparar o sofrimento destes dois povos acaba sempre por parecer extremamente desajustada e insultuosa.
A segunda preocupação de Naomi e de outras pessoas relacionava-se com o enredo do livro, no qual Erik jura descobrir a identidade do nazi – ou traidor judeu – que assassinou o seu sobrinho-neto e outras crianças do gueto. A sua transformação em detetive amador suscitava-lhes dúvidas porque, como rapidamente percebi, os polacos têm tendência para acreditar que os livros policiais são, por natureza, uma forma superficial de entretenimento. A minha resposta foi que acreditava que os temas policiais poderiam dar origem a romances sérios e com qualidade literária, desde que nas mãos certas, e acrescentei que, de qualquer modo, o elemento de mistério presente na história advinha diretamente da pesquisa que eu tinha feito sobre o mercado negro no gueto de Varsóvia, onde as crianças eram recrutadas como contrabandistas. Para que a minha opinião ficasse bem clara, perguntei-lhes:
- Se uma filha ou um filho vosso fossem assassinados enquanto andavam a fazer contrabando de comida no gueto, vocês não iriam tentar descobrir quem os tinha matado ou, quem sabe até, procurar vingar-se?”
Mais tarde, ao pensar nestas inquietações, percebi que os escritores judeus podem sentir-se mais à vontade para desenvolver novos modos de explorar o vasto leque de temas suscitados pelo Holocausto pela simples razão de haver menor probabilidade de sermos acusados de abordar o assunto de ânimo leve. Considerar o Shoah como um evento sagrado e de suprema solenidade era uma caraterística presente em todos os polacos com quem falei. Num país com um lado B tão sinistro no tocante aos sentimentos em relação aos judeus, esta parece-me ser uma atitude sábia e salutar. Também acabei por considerar a convicção dos polacos de que há uma maneira correta – e uma maneira incorreta – de escrever sobre o Holocausto como um ponto de encontro psicológico entre judeus e polacos, dado que a natureza especial do Shoah era algo com que ambos os povos não hesitavam em concordar.
A forte convicção de que existe essa maneira certa de fazer quase tudo foi-me apresentada por Hagay HaCohen, um jornalista nascido em Telavive e que agora trabalha na Rádio Nacional Polaca, como sendo característica dos polacos. Esta ideia surgiu quando comentei que um jornalista da televisão de Łodź me tinha dito que os adeptos dos dois grandes clubes da cidade gritavam judeu uns aos outros quando se queriam insultar. Aliás, a presença de grafitis antissemitas nas fachadas dos edifícios de Łodź é a prova de quão acérrima é a rivalidade neste desporto e da fenomenal persistência das associações negativas da palavra judeu nas mentes polacas. A minha pergunta a Hagay foi:
- Hoje em dia, chamar judeu a alguém implica algo mais do que os habituais estereótipos?
- Por acaso - respondeu ele - também pode significar que a pessoa insultada não obedece às regras de um comportamento correto. - E elucidou-me sobre este ponto contando-me algumas situações em que ele, um emigrante que falava um polaco quase fluente, mas que vivia em Varsóvia apenas há três anos, tinha pecado por se sentar numa posição demasiado à vontade num café ou por ter respondido de forma educada, mas “incorreta”, a alguém que lhe agradecia por ter segurado a porta do elevador.
Nos dias que se seguiram, procurei lembrar-me do insulto utilizado na língua inglesa para alguém que não cumpre as regras socialmente aceites ou que se comporta de maneira diferente dos habitantes locais. O melhor exemplo de que me lembrei foi preto. No Reino Unido, este é um insulto usado por grupos racistas para denegrir pessoas de origem estrangeira cuja aparência, costumes e atitudes são considerados desajustados à cultura britânica.
Quase no fim da minha conversa com os estudantes, quando lhes perguntei se em Varsóvia ainda prevalecia o antissemitismo, uma rapariga de cabelo comprido perto da fila da frente levantou a mão e disse-me, esforçando-se por se fazer entender:
- O antissemitismo já não faz parte das nossas vidas. É algo com que já não temos de lidar. – E os restantes alunos concordaram que esse já não é um problema da sua geração.
Não fiquei completamente convencido até ter chegado à pequena receção que me tinham preparado no gabinete do diretor. Perto de uma mesa com bolachas de manteiga, que tinham exatamente o mesmo sabor que as que o meu pai costumava comprar numa padaria judaica na nossa cidade, nos arredores de Nova Iorque, Marguerite, a professora de Francês, disse-me que ela e alguns dos outros professores levam voluntariamente os alunos finalistas a Auschwitz no final de cada ano letivo. Normalmente, cerca de 100 alunos participam na mais intimidante de todas as visitas de estudo.
- Eu sei que estar lá faz com que tudo o que lhes dizemos se torne real - disse-me Marguerite, no seu francês correto, mas com sotaque polaco. - Podemos perceber pelo seu silêncio quanto isso os afeta.
O momento mais marcante da minha digressão de seis dias – ainda mais marcante do que encontrar-me diante da casa do meu avô ou visitar o Cemitério Judeu de Varsóvia para localizar os túmulos dos nove Zimlers ali sepultados – foi quando Naomi me questionou acerca de uma determinada cena no início de Os Anagramas de Varsóvia. Enquanto recorda os modos distintos e a erudita sensibilidade do seu falecido pai, Erik, o narrador, apercebe-se, num momento de clarividência, de que os nazis estão a fazer tudo o que podem para assassinar todo um estilo de vida. Esta foi uma passagem do romance que chocou Naomi por ser particularmente forte. Após uma breve hesitação, ela perguntou-me se, de certo modo, Hitler não teria atingido o seu objetivo. Afinal, os nazis quase extinguiram a cultura judaica na Polónia; apenas em alguns locais restritos são visíveis vestígios dessa cultura.
Senti um nó na garganta ante tal insinuação, mas, à medida que os meus olhos percorriam a sala e os sessenta adolescentes que esperavam ansiosos pela minha resposta, foi como se uma janela se abrisse no meu coração e tive um daqueles raros momentos em que soube exatamente o que queria dizer.
- Estar aqui é algo que nunca pensei ser possível - disse-lhes, com voz trémula. - E Erik... Talvez ele também não tivesse acreditado que fosse possível. Penso, no entanto, que ele diria que o facto de eu estar aqui convosco hoje, nesta sala de aula, apenas a alguns quilómetros do local onde ele foi aprisionado no gueto, era a prova provada de que vocês e eu teremos a última palavra sobre a cultura judaica neste país. Seremos nós a decidir o que está morto e o que está vivo; não Hitler ou outros quaisquer que ainda pensem como ele.

Michael Fieni