O que me ensinou a pandemia

O que me ensinou a pandemia

 

Em Junho do ano passado, depois de passar uns meses em quarentena e preocupado com as consequências que a Covid-19 poderia ter para mim, para a minha família, para Portugal e para o mundo, escrevi um pequeno texto sobre o que tinha aprendido com a pandemia.

Gostaria agora de lhes ler esse texto e de analisar um pouco mais a fundo as lições que podemos tirar da pandemia e da nossa reação a esta nova realidade. 

 

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Escrevi hoje um haiku. À primeira vista, poderão pensar que não tem nada a ver com a pandemia, mas tem.

 

Eyes are moistened by

The whiteness of gravity.

Snowflakes in April.

 

Olhos humedecidos

Pela alva gravidade.

Flocos de neve em Abril.

 

Antes de mais, deixem-me dizer-lhes que para mim cada dia que passa parece-se em muito com o dia anterior. É pouco o que sobressai. Não tenho nenhum lançamento de livro, nem nenhuma viagem para qualquer lugar distante. Nada de “notável” que me aconteça. O que marca os meus dias são pequenos acontecimentos, como mais uma fornada de biscoitos de flocos de aveia e passas, ou acabar um gorro de croché que tenho andado a fazer para o bebé de uma amiga.

Ou a escrever um haiku.

E é aqui que há algo de novo: deixou de importar saber se o haiku vale alguma coisa. O “valor” dele não tem importância para mim neste momento – o que me dá a maravilhosa sensação de ter escapado a uma armadilha que me fora armada (ou que eu armei contra mim próprio) trinta anos antes, quando comecei a escrever o meu primeiro livro.

Raramente tento “explicar” o que escrevo – ou seja, dizer o que “significa” – porque considero preferível que os leitores elaborem as suas próprias interpretações. No entanto, desta vez quero abrir uma exceção tendo em conta o tempo particular que vivemos.

Do meu ponto de vista, este haiku tem bastante a ver com a pandemia porque fala em apreciar coisas aparentemente insignificantes como os flocos de neve. Se o fizermos, talvez demos por nós com os “olhos humedecidos”. Porquê? Por nos sentirmos gratos pela beleza do mundo, claro. Por estarmos vivos. Por estarmos bem. 

O haiku é também sobre a ligação entre descobertas extremamente pessoais – como a alegria de ver a neve a cair – e uma realidade que é maior, neste caso, a gravidade. E descobrir uma maneira surpreendente e única de dizer isso mesmo, uma maneira que talvez desperte o leitor com um súbito sobressalto: “A alva gravidade”.  

Para mim, a segunda e a terceira linha do haiku são uma representação fiel daquilo que esta crise sanitária ensinou a muitos de nós (ou nos recordou): que coisas pequenas e íntimas estão ligadas a situações muito maiores e importantes. Por exemplo, aqueles de entre nós que permanecem em casa e passam os dias a cozinhar ou a escrever estão a ajudar a garantir a segurança dos vizinhos e de todos os que não estão já infectados.

Alegra-me sentir que atividades insignificantes como fazer croché ou cozinhar possam servir para descrever a minha vida neste momento. Porque me dão paz. Requerem pouco ou nenhum esforço intelectual. E, como disse, pouco me importa se os resultados são bons ou não. 

Estar de quarentena mostrou-me também de forma clara que escrever é fundamentalmente diferente – mais tranquilo e mais lento – de um jogo de vídeo, de conduzir um carro ou enviar mensagens pelo telemóvel. Não é que veja algum mal nessas atividades. Seja qual for a maneira que encontrámos para lidar com esta crise sem magoar outras pessoas ou sem perdermos o juízo será a meu ver uma boa solução.

Mas acho que focarmo-nos no que é pequeno e silencioso – e por isso mesmo esquecido durante tempos normais – tem uma vantagem: pode evitar-nos entrar em pânico.

Tenho muita experiência neste capítulo porque passei muito tempo em pânico durante a última pandemia, a da sida, nos anos entre 1980 e 1990. Possivelmente todos nós achamos que lavamos as mãos muitíssimas vezes agora. Mas nos anos de 1980, depois de ir visitar o meu irmão à beira da morte no hospital, costumava lavar as mãos umas cem vezes por dia. Porque vê-lo morrer destruía praticamente toda a minha fé no mundo e tinha-me convencido de que cada pessoa e cada objeto que eu tocava podia deixar-me infetado com uma doença fatal.

Infelizmente, a linguagem do pânico foi adotada pelos nossos jornais e programas noticiosos na televisão, e por muitos líderes polítocos. Falam de “guerra” contra o vírus e caraterizam os enfermeiros e os médicos como “combatentes nas linhas da frente de batalha” e os pacientes como “vencendo” ou “sendo derrotados” na sua luta contra esta doença.

Terão eles consciência de que desse modo estão a deixar muitos de nós aterrorizados? Infelizmente, estou convencido de que a maior parte dos líderes e dos jornalistas não analisam a linguagem que usam. E por isso não fazem a mínima ideia de que há sempre uma mentira estúpida e perigosa que se esconde por trás das suas metáforas de guerra: a de que seria possível acabar com a pandemia esmagando-a pelo simples uso da força.

Mas não, a mera força não serviria de nada. O que porá fim a esta crise é a medicina e a ciência, permitindo-nos descobrir medicamentos úteis e umas vacinas. Até lá, os serviços oficiais capazes de adotar políticas inteligentes de contenção irão reduzindo a escala da pandemia investindo em toda a infraestrutura e em equipamento hospitalar necessários para lidar de forma eficiente com este fardo extra. E os médicos e enfermeiros ajudarão não só a salvar vidas como também a lembrar-nos que cuidam do nosso bem-estar – que farão todo o possível para ajudarem aqueles de entre nós que possam adoecer durante as próximas semanas e meses.

O facto de haver pessoas que não nos conhecem, mas para quem é importante saber se vivemos ou morremos, constitui um enorme testemunho da inerente nobreza dos seres humanos. 

O extraordinário trabalho dos médicos e enfermeiros nesta altura faz com que líderes como Trump ou Bolsonaro pareçam ainda mais irresponsáveis, egoístas e infantis. Isso acontece em parte porque, apesar de terem sido eleitos pelas pessoas dos seus países, claramente não compreendem nada do que é a nobreza de que muitos seres humanos são capazes. E se não tem ideia nenhuma de que há pessoas capazes de agir com nobreza é precisamente porque eles próprios são incapazes de o fazer.

Não podemos ver nos outros aquilo que não temos em nós próprios.

E é assim que nós poderemos deter a disseminação desta doença ao ficarmos em casa e a re-aprender o valor daquilo que é pequeno e silencioso e em grande parte útil apenas para nós.

Num dos meus romances, Os anagramas de Varsóvia, o narrador diz que a sua definição de paraíso é um lugar onde são as pessoas com voz mais suave que ganham todas as discussões.

Apercebo-me agora – e é uma grande surpresa – que esse é o mundo onde neste momento vivo. Por isso, talvez seja esse o desafio que esta terrível crise sanitária nos lança, a todos nós: fazer das nossas casas uma pequena e tranquila versão do paraíso.

 

*****

Foi este o texto que escrevi então, e depois de o ter publicado em Portugal e na América, a primeira lição que aprendi é que foram muitas as vezes em que falhei o objetivo de fazer da minha casa uma pequena e tranquila versão do paraíso.

Foram muitíssimas as horas e os dias em que, tal como muitos de nós, fui dominado pelo medo de ficar doente e de ter de ir para o hospital. E  até de poder morrer. Ou de isso poder acontecer ao meu marido Alexandre. Imaginei o impossível sofrimento de ter de dizer adeus à pessoa que amo e com quem vivo há 42 anos. 

E assim, pouco a pouco, ao longo dos meses que se foram seguindo, aprendi também a não exigir demasiado de mim próprio. 

Como consequência disso, mudei os meus hábitos de trabalho. Antes da pandemia, ao longo de 25 anos, costumava escrever de manhã, quando estava mais desperto. Durante o confinamento, porém, comecei a passar as manhãs a ver televisão, a ouvir música e a ler. Tinha necessidade de várias horas completamente livres de qualquer pressão intelectual ou emocional. 

 É curioso o modo como funciona a mente humana – como arruinamos o que os nossos dias têm de bom… Pouco depois do começo do confinamento, apercebi-me de que se um dia me estava a correr de maneira particularmente tranquila, eu arranjava maneira de dar cabo disso pondo-me a pensar: Tudo isto vai desaparecer um dia. E talvez mais depressa do que se pensa. Porque o novo coronavírus ensinou a todos aqueles que estiverem atentos que nada está garantido. Em Portugal morreram 17 mil pessoas, e nos EUA morreram 600 mil, para só falar dos dois países a que pertenço. Eram pessoas como nós. Tinham sonhos que esperavam ainda realizar, férias que contavam gozar… E depois, de um momento para o outro, todos essas aspirações e planos se evaporaram. Para os que cá ficaram, o lugar das pessoas amadas desaparecidas passou a ser apenas um espaço vazio com a sua exata forma e tamanho. Com a cara deles. E com a voz deles.

Os americanos costumam dizer: “O que acontece em Las Vegas, fica em Las Vegas”, como fazem os visitantes dessa cidade que muitas vezes se excedem na bebida ou nas aventuras sexuais e que preferem que isso não se saiba nos sítios onde vivem. Só que, como a Covid-19 já nos ensinou, os vírus não ficam em Las Vegas. Nem em Wuhan. Nem em lugar nenhum. Esse engano já morreu. Quando se trata de uma pandemia como esta, Nova Iorque e Lisboa estão mesmo ao virar da esquina de Pequim ou de Nairobi. Por isso é melhor abandonarmos o modelo do neo-liberalismo. Ou modificá-lo de uma forma significativa. E quanto mais cedo melhor. Porquê? Porque é um modelo que acentua de tal modo a desigualdade entre ricos e pobres que hoje em dia há milhões e milhões de pessoas em África, na Índia e em muitos outros sítios que não podem contar com cuidados de saúde adequados. Temos de estabelecer um equilíbrio económico bem maior e assegurar o acesso a vacinas e medicamentos a TODA A GENTE. Não só por ser a atitude mais justa do ponto de vista ético, mas também porque essa é a única solução inteligente e a longo termo de que dispomos. 

Descobri durante o último ano uma coisa que preferia não ter descoberto – que apesar de a maioria das pessoas estarem empenhados em proteger os seus amigos e familiares, há uma significativa minoria que não mostra a mesma disposição. Para eles, os direitos do cidadão mais importantes não são a liberdade de expressão, a liberdade de religião ou o direito de igualdade no acesso à educação, ao emprego, ao casamento. Dá a impressão de que tais questões não têm grande importância para eles. Sei que isso acontece porque conheço duas pessoas que se recusam a ser vacinadas e que se recusavam a usar máscara e a manter a distância de proteção mesmo quando estavam com pessoas exteriores ao seu círculo familiar.   Nunca na vida deles lutaram por qualquer direito cívico a não ser pelo seu direito a NÃO respeitar o dever de proteger as outras pessoas. Assim como o seu direito a insultar aqueles que o fazem. Tal como vocês, talvez, recebi muitíssimos insultos no Facebook por ter elogiado aqueles de entre nós que protegem os demais usando máscaras e mantendo a distância de proteção na sua vida social. Por ter elogiado médicos e enfermeiros. Por ter agradecido publicamente à Dra. Graça Freitas, ao Dr. António Sales e à Ministra Marta Temido.  E por apoiar sempre aqueles que acreditam na ciência e na medicina, que acreditam na utilidade do conhecimento.

Não podemos esquecer os 4 milhões que morreram em decorrência da Covid-19, fosse numa aldeia pobre da Índia rural, fosse numa mansão do centro de Londres. E não podemos esquecer que CADA UMA dessas pessoas apanhou a doença através do contacto com outra pessoa.

É provável que tudo isto seja para  vocês uma coisa óbvia. Mas nós vimos ao longo do ano que passou que existe uma significativa percentagem de pessoas que não compreendem o que a ciência nos mostra. E também não querem compreender. Diria mesmo que nunca se viu uma época em que tanta gente mostra orgulho na sua ignorância. E orgulho em espalhar mentiras – as mentiras que constituem atualmente a maior ameaça para as nossas democracias. Na verdade, contam-se por milhões aqueles que em todo o mundo espalham alegremente a mentira de que a Covid-19 não existe ou de que não passa de uma “gripezinha” sem importância. Por isso, permitam-me que repita: Todos aqueles que adoeceram com esta nova doença foi porque apanharam o vírus de uma pessoa que tossiu junto deles ou que espirrou ou lhes transmitiu o vírus na maior parte dos casos de forma evitável.

Há muito que decidi não querer ser responsável pela morte de outra pessoa. Nem sequer acidentalmente. E por isso sempre usei máscara de proteção, tanto no interior como no exterior, quando me encontrava perto de outras pessoas e sempre pratiquei o distanciamento recomendado. É uma coisa que para mim me parece perfeitamente racional. 

Porque haveria eu de pôr em risco a vida de outra pessoa? E porque haveria eu de querer tornar mais difícil o trabalho dos profissionais de saúde? É uma coisa que para mim não faz sentido. Nem nunca fará.

 Francamente não consigo entender que se pense de outra maneira. É para mim um mistério. É um nível de egoísmo com que preferia nunca ter de me confrontar.

Possívelmente, também vocês preferiam.

Mas temos de o encarar de frente, como única maneira de o combater.

Deixem-me contar-lhes uma breve cena a que assisti há pouco.  No pico da pandemia em Portugal, com 15 mil pessoas por dia a terem testes positivos, reparei num casal jovem a passear com um bebé num carrinho na Avenida de Roma, em Lisboa. Vinha com eles também uma filha, talvez de uns sete anos de idade. Havia muita gente na rua, que passava por eles num sentido ou noutro. Ninguém usava máscara nessa família. E a certa altura o homem tossiu e cuspiu para o chão.

Conto isto porque me pareceu que toda esta cena era uma representação da mensagem simbólica que esse homem e a sua mulher transmitiam à filha deles e a toda a gente com quem se cruzavam. E que simplesmente era esta: “Estamo-nos nas tintas para vocês. Só nós contamos. Nem sequer olhamos para vocês como sendo reais. E queremos que os nossos filhos façam também de conta que vocês não existem.”

 Deixem que vos diga: tenham cuidado com qualquer homem ou mulher que não veja os outros como sendo reais. É uma doença mental muito perigosa.

 Vou contar mais uma pequena história… Há cerca de um mês entrei na minha farmácia no Porto e perguntei ao farmacêutico se já tinha sido vacinado. Resposta dele: “Ah, não. Eu não me vou vacinar.”

“Porquê?”, perguntei eu.

“Porque estou em boa forma física, frequento um ginásio. Não corro o risco de adoecer.”

Nesse preciso momento decidi não voltar a falar com ele. Primeiro, porque aparentemente não compreendia que mesmo não apresentando sintomas podia passar a doença à filha, ou à mulher dele, ou a mim ou a qualquer outra pessoa. Mas também porque ao falar assim parecia insinuar que as pessoas morrem de Covid-19 por não estarem em boa forma física e não frequentarem o ginásio. E que portanto as 400 mil pessoas que morreram na Índia, muitas delas por falta de oxigénio e de medicamentos básicos, são as únicas culpadas do que lhes aconteceu. 

“Quem morre, é que tem a culpa”, era o que o farmacêutica me estava a dizer. “Por não ter ido ao ginásio três vezes por semana como eu faço!”

Esta atitude revela um tal desprezo pelas pessoas que vivem em países mais pobres do que Portugal e ao mesmo tempo mostra uma tal ignorância da Ciência que eu fiquei sem saber como começar um diálogo com ele. 

Outra coisa que aprendi: não vale a apena discutir questões de saúde pública com pessoas que desprezam a ciência.

Temos de nos defender de tais pessoas – psicologicamente, fisicamente e moralmente.

Porque tais pessoas não vão desaparecer – muito menos agora que têm partidos políticos que as representam – como o Partido Republicano na América ou o Chega em Portugal.

Cheguei também à conclusão de que tenho de deixar de pensar nessas pessoas, se não quero entrar em pânico ou ficar deprimido. E tenho também de deixar de ler tantas notícias sobre a crise sanitária.

Sinto falta de estar tranquilamente sentado a escrever os meus livros, a fazer os meus cozinhadose e a ver jogos de basquete na televisão. 

Ao fazer isso, descobri que tinha uma grande vantagem sobre a maior parte das pessoas. É que vivi uma boa parte dos últimos 25 anos em confinamento. Passo 4 a 10 horas por dia sentado diante do computador a escrever os meus livros. Consigo facilmente passar semanas inteiras sem ver mais ninguém além do meu marido e de um ou outro empregado das lojas onde faço as compras. É uma coisa que me agrada. Em parte, porque quando estou entre as minhas personagens, que tanto podem ser de uma Lisboa do século XVI como do gueto de Varsóvia ou da Terra Santa de há dois mil anos, sinto-me em casa. As vidas das minhas personagens são uma parte importante do pequeno paraíso tranquilo a que me referia no início da minha intervenção.

Sinto-me sempre grato por poder fazer um trabalho que me preenche. Mas hoje, depois dos últimos quinze meses que vivi, sei até que ponto sou afortunado.

Não há dia que não me sinta grato por viver com o Alexandre, por contar com bons amigos e por poder ganhar a vida escrevendo os meus romances.

Nos nossos dias vê-se tanta gente que passa a vida a lamentar-se, a insultar-se e a discutir… Quem os ouvisse, havia de concluir que não há nada de bom em Portugal.

Mas não será verdade que devemos reservar um espaço para louvar, para agradecer e para dizer o quanto apreciamos um belo dia de primavera? O quanto apreciamos o simples facto de estarmos vivos? É minha particular convicção de que fazendo isso estamos a contribuir para a criação de um sentimento de comunidade, para todos podermos recuperar desta pandemia devastadora.

  Agradeço pois o convite que me foi feito. Estou muito grato por estar aqui esta tarde com todos vocês. Na verdade, pensando em tudo aquilo por que todos passámos, sinto-me grato por estar aqui ou onde quer que seja.

Desejo a todos vocês que se mantenham fortes, sãos e em segurança.

Obrigado.

 

Richard Zimler