A Importância de Contar Histórias

17 January 2016

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A IMPORTÂNCIA DE CONTAR HISTÓRIAS 

 Queria agradecer ao Professor Sampaio da Nóvoa o convite que me fez para falar aqui esta tarde. E quero agradecer tambem aos organizadores da sessão, principalmente à Professora Fátima Vieira.

Hoje queria falar-lhes sobre um tema, que cada vez mais me parece importante: “contar histórias”.

A minha intervenção deverá ter uma duração de meia hora.

E gostava de começar recuando no tempo até ao momento em que de certo modo tive uma revelação sobre a arte de contar histórias que mudou a minha visão sobre o modo como vivemos a nossa vida.

Esta minha história começa no Verão de 1973.

Tenho consciência de que isto para alguns dos que me ouvem é como falar da Idade Média, mas nessa altura eu tinha dezassete anos e preparava-me para entrar para a Universidade.

Escusado será dizer que nessa altura – como o típico jovem americano que eu era – não sabia praticamente nada sobre Portugal. E se então me tivessem dito que haveria de passar aqui a maior parte da vida adulta a minha resposta possivelmente seria a de que não deviam regular bem da cabeça.

Em fins de Agosto de 1973, acompanhado pelo meu pai, parti de Nova Iorque até à Duke University – uma viagem de uns 700 quilómetros – para começar os meus estudos universitários.

Não conhecia uma única pessoa na Duke.

Sentia-me intimidado e nervoso.

Nas primeiras semanas na universidade travei amizade com um casal um pouco mais velho – andariam então perto dos trinta – que tinham sido recrutados pela Universidade para viverem num apartamento situado no rés do chão da residência universitária onde eu fiquei instalado.

Como alguns de vocês sabem, isto é uma prática corrente nas universidades americanas. A ideia é que um casal mais velho pode oferecer uma certa estabilidade às vidas dos jovens, que em muitos casos se encontram pela primeira vez a viver longe das suas famílias.

Para lhes dar um nome nesta história, chamemos-lhes Don e Anna. Embora, naturalmente, não sejam esses os seus nomes verdadeiros.

Durante o meu ano de caloiro, foram muitas as vezes que jantei em casa do Don e da Anna.

A nossa amizade manteve-se durante os meus quatro anos na Duke, e continuei em contacto com eles mesmo depois de me ter mudado para San Francisco em 1978.

Muitas vezes durante aqueles anos da década de 1980 a Anna confidenciou-me a sua insatisfação com o seu casamento. E sobretudo por duas razões: a primeira, era por ela e Don não terem tido filhos. Na verdade, Anna contou-me que Don se recusava em absoluto a ter filhos e que ela os desejava ardentemente.
A segunda razão era que, na opinião de Anna, Don deixara de se sentir fisicamente atraído por ela.

Em 1989, foi de Cincinnati, onde morava, até Nova Iorque para me ver e falar comigo sobre a sua infelicidade. Desatava frequentemente a chorar e quando voltou para casa anunciou a Don que queria divorciar-se.

Pouco depois da separação dos dois, falei com Don ao telefone.

Ele estava muito triste. Não compreendia por que razão Anna o deixara. Sentia-se perdido.

Durante a nossa conversa, começou a falar de si próprio na terceira pessoa, o que me pareceu estranho. E importante.

Era como se abaixo do nível das palavras estivesse a sussurrar-me: “Presta atenção a isto!”

E o que ele me contou foi mais ou menos isto:

Dois miúdos ítalo-americanos conhecem-se na Universidade do Ohio em 1964 e apaixonam-se.

São filhos de emigrantes italianos.

Dão passeios de bicicleta juntos e estudam nos cafés locais.
Começam a explorar a sua sexualidade.

E quando vão a casa dos pais da rapariga em Cincinnati, o pai e mãe dela recebem em casa o rapaz como se ele fosse um filho há muito desaparecido.

Mudam-se então para a Duke e ele começa um doutoramento em Educação.

Ela dedica-se à pesquisa para o seu mestrado em literatura inglesa.
Tornam-se amigos íntimos de alguns estudantes da residência universitária onde vivem.

A seguir ao doutoramento dele, mudam-se de novo para Cincinnati.

Fazem-se sócios da Cooperativa de Consumo e nos fins de semana dedicam-se a preparar belíssimos pratos de comida italiana. Fazem viagens de bicicleta através da Costa Rica e de Belize. Aprendem italiano e vão a Itália ver a terra onde os pais tinham nascido.

Tudo uma maravilha.

E às tantas, um dia, sem mais nem menos, ela anuncia ao marido que já não o ama.

O casamento deles tinha sido uma mentira, diz ela.
Quer o divórcio…

************

Don continuou a falar de si próprio na terceira pessoa por mais uns dez minutos.

Ao ouvir a narrativa dele sentia em mim como que um formigueiro.

“Não te esqueças desta história!”, não parava de dizer a mim próprio.

Mas só um ou dois meses mais tarde compreendi por que razão a história tinha tanta importância para mim.

Foi então, num momento de revelação, que cheguei a uma conclusão supreendente: a de que talvez seja assim que todos nós fazemos a narração da nossa vida!!

Talvez o façamos frequentemente na terceira pessoa. Falarmos sobre a nossa vida como se fôssemos outra pessoa talvez nos permita aceder a uma perspectiva útil.

Talvez seja uma técnica para nos convencermos a nós próprios de que aquilo que dizemos é de certo modo objectivo. Mesmo que não o seja.

Não tenho bem a certeza.

Mas do que tenho a certeza é de que estamos constantemente a retocar a nossa própria história na nossa cabeça, quer tenhamos consciência disso ou não – e quer seja verdade ou não aquilo que dizemos sobre nós.

Pode até acontecer que contemos parte dessa autobiografia em voz alta numa ocasião ou outra, como Don fez.

Mas estou convencido de que a maior parte das vezes se mantém oculta de nós.

Estou convencido de que a contamos a nós próprios a um nível um pouco abaixo do plano da consciência.

Apenas tomamos consciência disso acidentalmente, quando subitamente damos por nós a contar a um amigo um acontecimento ocorrido uma semana antes, ou um ano ou dez anos antes…

Só então pensamos: “ Pois é, foi assim que se passou, foi essa sequência de acontecimentos e sensações!”

Reparei que costumo tomar consciência da história que andei a contar a mim próprio sobre a minha vida quando estou a falar sobre qualquer acontecimento particularmente traumático ou feliz do meu passado, como a morte do meu irmão com Sida em 1989.

Ou a minha vinda para Portugal em 1990.

Ou de quando o meu primeiro romance foi publicado em 1996.

Nesses momentos, começo a ver a forma da minha própria narrativa.

Nessa altura vejo os motivos, os desejos, os desapontamentos e as esperanças que tinha posto na autobiografia que tinha andado a escrever.

Mas note-se que, no caso de Don e Anna, tenho a certeza de que Anna discordaria da história de Don em muitos aspectos importantes.

A verdade é que ele nunca falou em nenhumas discussões, em nenhuma das dificuldades que existem em todos os casamentos.

Mais importante ainda: nunca falou na sua recusa em ter filhos. Ou na possibilidade de ter deixado de achar Anna atraente.

Estas omissões são o ponto central daquilo que queria dizer-lhes hoje.

Porque acredito que estas histórias que nos contamos sobre as nossas vidas podem ter um vasto leque de variações, podendo ser mais ou menos exactas e mais ou menos completas.

E a exactidão daquilo que contamos a nós próprios podem ajudar a determinar se levamos uma vida autêntica e realizada. Ou uma vida que achamos – nos nossos momentos de reflexão – ser um engano e uma fraude.

Para as pessoas que continuam sem ter consciência da sua vida interior – que não estão em contacto com as suas emoções, as suas motivações e os seus verdadeiros desejos – a história que contam será uma série de clichés superficiais.

A pessoa que conta a história será sempre o herói.

No fundo, todas as pessoas a quem falta maturidade e rigor gostam de se ver como sendo boas e amáveis e afectuosas.

Nunca querem reconhecer as suas falhas.

Quando as coisas correm mal, a culpa é sempre dos outros.

É o narrador, ou narradora, da própria história que é um incompreendido.

Ou uma vítima.

Ou é traído.

Ele, ou ela, nunca é aquele que faz do outro vítima ou o que trai.

Isto parece-me ser um problema particular na América, onde muitas pessoas ficam para sempre bloqueadas numa fase adolescente de culpar os outros pelos caminhos que as suas vidas seguiram.

O que queria salientar, no entanto, é que as pessoas que contam a si próprios este género de história nunca terão a mínima ideia da enorme discrepância entre a sua versão e o modo como os outros os vêem.

A história da sua vida é uma quase total fantasia.

As suas semelhanças com a vida real é ténue.

Pelo contrário…

As pessoas que páram para reflectir sobre as suas motivações e desejos, as suas falhas e fragilidades…

… as pessoas que se põem no lugar dos seus familiares e amigos…

… as pessoas que estão conscientes das suas emoções – desde a cólera e a inveja até ao amor desinteressado – contam a si próprios uma história da sua própria vida de um modo muitíssimo mais complexo e com muitos mais matizes.

E provavelmente muito mais exacto.

Nem sempre são os heróis da sua autobiografia.

Reconhecem as suas más decisões e os comportamentos que causaram mágoa aos outros.

A este propósito – e se me permitem uma pequena digressão – lembro-me de uma frase famosa do nosso Presidente da República, Cavaco Silva, quando proclamou: “Eu nunca me engano e raramente tenho dúvidas.”

Ao contrário de Cavaco, as pessoas que reconhecem a sua complexidade e humanidade sabem que muitas vezes estão enganados.

E às vezes muito enganados.

As pessoas com maturidade são capazes de fazer uma coisa que aqueles que se mantém cegos para a sua vida interior nunca farão: assumir a responsabilidade pelas suas acções menos meritórias.

Voltando à história de Don, a razão porque ele continuava a sentir-se completamente desorientado pela atitude da sua mulher devia-se em parte – acho eu – ao facto de a história que ele se contava a si próprio ser tão inexacta e superficial!!!

Achava que ele e Anna sempre tinham formado um casal maravilhoso.

Por isso como podia ele compreender o sofrimento dela e a sua zanga, ou a razão por que ela tinha pedido o divórcio?

Não podia.

A história que Anna contava a si própria sobre a sua própria vida – e a vida deles em comum – era completamente diferente da dele.

Embora talvez tivesse também as suas imprecisões flagrantes.

Seja como for, estou convencido de que Don teria conseguido compreender mais rapidamente a sua mulher e teria conseguido prosseguir melhor a sua vida se tivesse contado a si próprio uma história mais completa e tivesse assumido uma parte da responsabilidade na direcção que o casamento deles tomou.

Deste modo, acredito que a história que contamos a nós próprios sobre a nossa vida influencia praticamente todas as decisões que tomamos e todas as voltas que a nossa vida dá.

E pode dizer-se que uma coisa que as obras de ficção boas e inteligentes nos podem dar é o treino para contarmos as nossas próprias histórias com todas as suas complexidades e matizes.

Fazendo de nós contadores de histórias competentes.

O livro que lemos – seja uma antiga tragédia grega ou a melhor ficção contemporânea inglesa – pode ajudar-nos a ver que nem sempre somos coerentes e bons.

Pode ajudar-nos a reconhecer a nossa comum humanidade – que a maior parte de nós estão empenhados na procura de sentido e de amizade – de amor.

E de sentir como válido aquilo que fazemos.

Os livros podem ajudar-nos a reconhecer que por vezes magoamoss as outras pessoas – seja por acaso seja deliberadamente.

Podem mostrar-nos também como muitas vezes mentimos a nós próprios. E dar-nos pistas para compreender por que razão o fazemos.

Deste modo, as histórias escritas por outras pessoas – por pessoas que não conhecemos podem ter um efeito directo no modo como nos vemos a nós próprios e como interagimos com os outros.

Ajudam-nos a tornarmo-nos seres humanos completos por nos permitirem contar a nossa história com justeza e verdade, quer de modo consciente quer abaixo da superfície da nossa consciência.

Por outras palavras, os romances realmente bons podem ensinar-nos a escrever uma autobiografia que nos seja útil ao longo da nossa vida.

… uma autobiografia que nos ajudará a comprender como interagir melhor com aqueles que amamos e com todas as pessos com quem nos cruzamos.

Como é óbvio, por melhores que sejam os romances só podem ter esse efeito se os lermos com um espírito aberto.

E se conseguirem envolver as nossas emoções, obrigando-nos a reflectir na nossa própria vida com sinceridade – e com perspectiva.

Esta é, para mim, uma das coisas mais estimulantes ao escrever ficção. Ao contar histórias.

E acrescenta mais uma camada de responsabilidade ao meu trabalho, já que as minhas palavras podem ter uma influência importante nas vidas dos meus leitores.

… de um modo que os encoraja a buscar significado e autenticidade, espero eu – mesmo que em certos casos isso implique passar por um divórcio. Ou largar um emprego. Ou ir viver para outro país.

Acontece que um dos problemas que temos na nossa sociedade contemporânea, acho eu, é não dispormos já à nossa volta de histórias capazes de nos ajudarem a aprender a contar a nossa autobiografia de um modo complexo, inteligente e útil.

Hoje em dia, quando entramos numa livraria, já não encontramos à nossa espera nas mesas ou nas estantes em evidência romances comoventes, desafiadores, perturbantes.

Romances para homens e mulheres que querem ter vidas adultas e não ficarem eternamente adolescentes.

Pode ser que esses livros nunca tenham sido abundantes, mas a minha impressão é que estão a tornar-se cada vez mais difíceis de encontrar.

Entra-se numa livraria em Portugal, ou em Espanha, ou no Canadá, ou na Alemanha… Mesmo nas melhores livrarias de Londres ou de Nova Iorque… e o que se encontra exposto nas mesas é sobretudo lixo:

Romances de amor, livros de auto-ajuda simplistas, biografias de Hollywood.

Conspirações do Vaticano ou reformulações de westerns agora situados noutros planetas.

Ou de vampiros.

Não quero com isto dizer que uma história sobre vampiros, por exemplo, não possa ser inteligente e maravilhosa, mas na sua maior parte são idiotas e infantis, além de mal escritas. Sei que é assim, porque tentei ler alguns desses livros.

Livros a que eu chamo “clones” – cópias das mesmas histórias e personagens repetidamente – estão quase sempre no top das listas de bestsellers nos dias que correm, porque quando algum livro realmente mau se torna num sucesso de vendas os editores publicam imediatamente mais outros mil.

Em todos os países, na Europa e nas Américas.

Os editores reforçam ainda os mais estúpidos e mais comerciais desses livros com grandes campanhas de publicidade. E os produtores de cinema escolhem-nos para argumentos de filmes de grande orçamento.

Neste momento estes romances clonados estão perto de se tornarem em jovens Dráculas em busca de sangue e sexo, e de contos de dragões e feiticeiros. Há também centenas de conspirações de inspiração cristã, mistérios escandinavos e livros espirituais que falam sobre o encontro com os pais ou os avós no paraíso. Daqui a alguns anos, sabe-se lá o que estará na moda.

Há uma coisa, no entanto, que é certa: não seremos capazes de lhes escapar.

Não se esqueçam que os livros expostos nas montras das livrarias – onde os livreiros costumavam pôr os livros de que gostavam – são aqueles a que os editores querem dar publicidade pagando para isso quantias enormes.

Ter um livro exposto numa montra da Waterstones em Londres custa qualquer coisa como seis mil euros por semana hoje em dia.

Por isso só as obras mais comerciais terão sempre lugar nas montras das grandes cadeias de livrarias.

E como hoje praticamente o que domina são as livrarias das grandes cadeias, os melhores livros que ainda conseguem ser publicados perdem-se no meio do resto.

E assim se explica que no topo da actual lista de livros mais vendidos em Portugal encontremos:

Tres romances de amor, um livro de culinaria de Jamie Oliver, “As Flores de Lótus” de José Rodrigues dos Santos, uma conspiração no Vaticano e mais uma sequela às
“Cinquenta Sombras de Grey”– o que parece provar que livros mal escritos em excesso é coisa que não existe.


Antes que se pense que esta estupidificação se limita aos livros, veja-se a lista dos “tops” de filmes de 2014 na América:

“The Hunger Games: Mockingjay - Primeira parte”, uma distopia para adolescentes.
“Guardians of Galaxy”, um jogo vídeo.
“Capitão América: O Soldado do Inverno”, uma banda desenhada.
“Lego, o Filme”. Brinquedos infantis que ganham vida.
“Transformers - Era da extinção”, um jogo vídeo.
“X-Men: Dias de Um futuro Esquecido”, uma banda desenhada
“Planeta dos Macacos: A revolta”, a última sequela.
“O Espectacular Homem Aranha - 2”, mais uma banda desenhada.
e
“Godzilla 2014”, monstros japoneses.

Praticamente todos os filmes do “top 20” nos EUA foram feitos para atrair adolescentes ou até pré-adolescentes – tal como o novo filme de Star Wars que acabou de sair.

Mas o problema é que também são vistos e apreciados por dezenas de milhões de adultos.

Mas será que estes espectadores são realmente adultos?
De um ponto de vista psicológico…?

Faço esta pergunta porque compreender esses filmes exige uma experiência de vida tão limitada que um miúdo de doze anos é capaz de perceber tudo o que ali há para perceber.

Que é praticamente nada.

Aquilo que apresentam são clichés de histórias simplistas.

Perseguições de carros. Ou perseguições de monstros. E batalhas épicas entre bons e maus.

E uma data de efeitos especiais.

São histórias que não se abrem a diferentes interpretações.

Não exigem ao espectador recorrer às suas experiências mais traumáticas, ou felizes ou trágicas para poderem compreender o comportamento das personagens.

Alguém que tenha atingido a maturidade – que tenha pensamentos e necessidades de adulto – há-de achar tais histórias infantis e chatas.

Mas há milhões de pessoas com idades entre os 20, os 30, os 40 anos que acham esses filmes interessantes. O passatempo perfeito.

Uma das coisas mais maravilhosas das obras de arte complexas – dos bons livros, dos bons filmes – é que exigem a nossa constante contribuição: compreender como as personagens se relacionam umas com as outras e como pensam.

O sentido do “Dom Quixote” tem aspectos que serão diferentes para um jovem espanhol e para um americano de idade.

Do mesmo modo, uma jovem universitária feminista do Médio Oriente provavelmente lerá “Otelo” de modo muito diferente de uma professora sueca.

A literatura exige que nós – os leitores – usemos a nossa experiência e sensibilidade para completar a narrativa.

Estas histórias têm diferentes níveis de significado:

Será que “Os Irmãos Karamasov” é sobre as relações familiares e como elas se desfazem?
Ou será sobre a nossa relação com Deus?
Será sobre redenção?
Sacrifício?
Traição?
Sobre as tensões entre pais e filhos?
Será sobre a rejeição e a solidão?

Obviamente, é sobre todas estas coisas e muito mais.

O “Homem Aranha - 4” não funciona deste modo. É uma fantasia feita para divertir miúdos. O que está muito bem quando se tem 10 ou 12 anos.

Mas “O Homem Aranha - 4” não ajudará em nada a dar sentido à nossa vida, nem ajudará ninguém a contar a sua própria história com profundidade quando chegar aos 20 ou 30 anos.

Isto é uma coisa que se torna particularmente óbvia com a idade, porque livros como “Os Irmãos Karamasov” ou “Orgulho e Preconceito”, ou “O Vermelho e o Negro” têm um significado para nós quando temos vinte anos e outro muito diferente quando chegamos aos sessenta.

Como poderia não ser assim? Ao fim e ao cabo, a nossa perspectiva sobre nós próprios e o mundo muda ao longo da nossa vida.

As perguntas que fazemos vão mudando.

Os nossos medos, as razões de satisfação e as nossas necessidades evoluem.

E também nós nos vamos aproximando naturalmente de uma maravilhosa narrativa de modo muito diferente à medida que vamos evoluindo na nossa caminhada pessoal.

Mas as obras escritas para pessoas imaturas e sem sensibilidade não mudam com a idade.

A maior parte dos programas de televisão ilustram isso muito bem.

Um episódio de “Seinfeld” ou de “Friends” não exige nenhuma interpretação. Não vai além do nível do significado superficial.

E é assim que entrámos numa época em que quase todos os livros, filmes e programas de televisão que nos oferecem pouco nos ensinam sobre como escrever a nossa oprópria história.

No fundo nada, de facto.

Mas, o que é pior, podem ensinar-nos muitas coisas erradas.

Que a vida se resume ao sucesso, por exemplo.

Ou a dominar quem discorda de nós.

Ou que a vida não vai além de passar uns bons momentos com os amigos a rir, ir ao ginásio e ao bar local, e tentar impressionar os outros e mostrar como somos espertos.

No fundo, estou convencido de que aqueles de nós que lêem esses livros feitos de clichés, que vêem filmes com histórias infantilizadas acabam por escrever na sua cabeça histórias que serão também uma versão infantilizada feita de clichés da sua própria vida.

Não passará de uma fantasia simplista e que não os preparará para todas as provas da vida adulta, porque não os preparará:

para se apaixonarem,
para se “desapaixonarem”
para discutir as questões de vida e de morte com os pais ou os filhos
para enfrentarem uma doença grave
para uma recuperação
para enfrentarem a morte
para as dificuldades de dinheiro
para os problemas de perda de emprego
para a traição de um velho amigo
para se despedirem dos sonhos da juventude
para descobrirem novos sonhos
para descobrirem o que querem realmente fazer da sua vida

Pouco se aprenderá também sobre a solidariedade

Sobre como compreender e ajudar os que sofrem, sejam amigos chegados ou desconhecidos envolvidos em conflitos em lugares distantes do nosso.

Para nos prepararmos para viver vidas aventurosas e ricas de entreajuda, penso que temos de ler ou ouvir histórias que nos desafiam, que nos comovem, que nos põem à prova.

Sim, acho que Jane Austen, Eça de Queirós, Miguel Torga, Philip Roth, William Faulkner e centenas de outros grandes escritores nos ensinam a contar as nossas próprias histórias.

E ao fazê-lo, ajudam-nos também a viver uma vida mais intensa e realizada.

Sempre que um político ou um jornalista nos diz na televisão que a formação literária não tem qualquer utilidade, é isso mesmo que eu gostaria de lhe responder.

Há ainda uma última precisão que gostaria de fazer.

Ultimamente, ao ler ou ver os noticiários, fui tomando consciência de que uma grande parte dos desentendimentos políticos no mundo têm a ver com a incompatibilidade entre as histórias que contamos a nós próprios.

De facto, em grande parte a política é um combate entre histórias.

As nossas e as deles.

Um exemplo…

Ao mesmo tempo que o anterior Governo se esforçava por justificar o seu programa neo-liberal de cortes orçamentais, o representante do Fundo Monetário Internacional em Portugal, Subir Lall, disse numa entrevista que o caminho seguido por Portugal (e cito): “é como uma maratona. E quando eu corro numa maratona não estou a pensar só nessa corrida, mas em todas as corridas em que participei. Torna-se numa forma de viver. Requer disciplina. Portugal está no bom caminho.”

Como vêem, o Sr. Lall criou uma história sobre Portugal que serve para justificar o seu próprio trabalho. Para ele, todos os portugueses participaram numa heróica maratona – esforçando-se por ultrapassar os seus – os nossos! – próprios limites e atingir algo grandioso.

Há quem não concorde com ele, naturalmente.

Numa entrevista na televisão, tentei uma vez transmitir a ideia de que mesmo que a austeridade pudesse reduzir a nossa dívida seria sempre apesar de tudo uma vitória de Pirro, pois seria à custa da perda de 400 mil licenciados altamente qualificados e de um empobrecimento do nosso país maior do que antes da crise económica. É preciso não esquecer que o salário mínimo – até à subída legislada pelo novo governo – era inferior ao que tinha sido em 1974, depois de ponderada a inflação.

A história referida nessa entrevista foi a “Moby Dick”, com Passos Coelho no papel de Ahab perseguindo a baleia branca – dominado pela sua obsessão, incapaz de ver o verdadeiro curso dos acontecimentos, e conduzindo assim à perda todo o navio.

Não pretendo dizer que a minha história seja a única verdadeira e que a do Sr. Lall esteja errada. Neste momento, o que quero dizer é que todos nós contamos a nós próprios histórias semelhantes sobre os conflitos que existem no mundo.

Só assim podemos dar sentido à paisagem política. É esse o modo como podemos situar os acontecimentos em contexto e escolher os nossos aliados.

E como compreender quem são os inimigos.

Outro exemplo conhecido em Portugal é o que nos fornece Isabel Jonet, Presidente do Banco Alimentar, que certa vez disse que os pobres e muitos outros neste país tinham vivido muito tempo acima das suas possibilidades.

Por outras palavras, o nosso sucesso e conforto eram artificiais. Tínhamos tido facilidades de mais.

Ao que parece é essa a história que ela conta a si própria para dar sentido à crise económica. E não é a única.

Será exacta a visão que Isabel Jonet tem da crise? Não me parece que seja, mas não sou especialista na matéria.

O que eu sei é que os comentários dela levantaram uma onda de indignação.

Na minha opinião isso deve-se ao facto de que os dois milhões de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza – e outros que sobrevivem a custo com os seus magros salários – não consideram ter vivido acima dos seus meios.

A história que os meus amigos que vivem de pensões reduzidas se contam sobre o seu próprio valor e sobre os seus esforços para se aguentarem é muito diferente da que conta Isabel Jonet.

Acham que a perspectiva dela pouco ou nada tem a ver com o que eles viveram. Ou com a sua realidade do dia a dia.

Esses meus amigos consideram os comentários dela falsos e insultuosos.

Cada vez que pegamos num jornal ou ouvimos as notícias na televisão, podemos ler e ouvir esse género de histórias debaixo da superfície das opiniões das pessoas.

Será Israel uma nação heróica que se defende a si própria e a todos os judeus contra os agressores fundamentalistas e terroristas que vivem nos países à sua volta?

Ou não será Israel o agressor, destruindo a vida e a cultura palestinianas a cada ocasião que aparece?

Vítima ou agressor?

E qual será a história que os membros do chamado Estado Islâmico e outros fundamentalistas islâmicos contam a si próprios sobre a relação histórica entre a Europa e os países muçulmanos? Ou, mais concretamente: os assassinos dos jornalistas do Charlie Hebdo e dos fãs de Heavy Metal presentes no Bataclan em Paris que lugar ocuparão numa história mais vasta sobre as reais necessidades do mundo?

Não estou a dizer que o saiba. Mas penso que se quisermos compreendê-los – e detê-los – é melhor descobrir isso.

Agora que me treinei, posso ver e ouvir as histórias que estão por baixo daquilo que ouço aos comentadores quando falam dos acontecimentos domésticos ou internacionais.

Esta tornou-se na minha “nova forma de ler e ouvir”, digamos assim.

E esta perspectiva ajudou-me a compreender a razão por que certos conflitos parecem não ter solução.

Porque vemos que as histórias subjacentes, não-explícitas, que os dois, ou três, ou quatro lados em conflito contam a si próprios muitas vezes não têm quase nada em comum.

E estou perfeitamente convencido de que é muito mais difícil abandonar a nossa história não-explícita do que uma simples opinião.

Imagine-se como era difícil, por exemplo, para o Presidente De Klerk da África do Sul contar a si próprio uma história sobre a África do Sul completamente diferente da que tinha aprendido desde criança – abandonar a narrativa de que o apartheid era a salvação do país e de que os afrikaaners eram um povo heróico em luta contra pagãos inferiores… E como escrever uma nova autobiografia de si próprio e do seu povo.

Às vezes penso que isso faz dele – e de pessoas como ele – alguém incrivelmente heróico. Porque nos mostra que é possível crescer e mudar – para que as histórias que contamos a nós próprios possam evoluir.

Podemos abandonar narrativas anteriores que sejam ou falsas ou que tenham deixado de ser úteis e escrevermos outras novas.

Pessoas como ele, mostram-nos que há um modo de seguir em frente mesmo quando nos parece que temos o caminho completamente bloqueado.

Espero que nos quatro anos que temos pela frente, seja possível abandonar muitas das histórias contadas pelos Governos anteriores.

E sobretudo a mais perniciosa delas todas, na minha opinião: a de que a educação apenas serve para preparar as pessoas para uma profissão.

Para os nossos governantes, a educação não tem nada a ver com a necessidade de nos preparar para participar na sociedade como cidadãos activos. Ou de realizar as nossas potencialidades. Ou de nos conhecermos melhor. E muito menos com a necessidade de aprender a apreciar e examinar o mundo maravilhoso em que vivemos. Segundo eles, o papel de um aluno é aprender uma ou duas habilidades especificas para que possa conseguir um emprego numa linha de produção, numa loja, num hotel ou num escritório.

A mensagem subjacente é que embora os estudantes da Alemanha, da América e de muitos outros países possam sonhar com uma vida realizada e seguir as suas paixões, os nossos estudantes devem abandonar os seus sonhos. Não devem viver “acima das suas possibilidades”.
Não sei se já repararam que em Portugal o desejo de sermos a pessoa que queremos realmente ser é considerado como “acima das nossas possibilidades”?
Confesso que adorava ter um Presidente que pusesse em causa esta mentira tão perniciosa – um Presidente capaz de compreender para que serve a educação! E para que servem as histórias que contamos para os outros e…para nós próprios.
Por isso, vou votar no Professor Sampaio da Nóvoa no dia 24 de janeiro.
Obrigado.

Michael Fieni